A vida real não tem tanta graça assim. Uma pitada de rotina
aqui, lascas de melancolia ali, fatias de felicidade, que a gente consome com
reserva. Pode ser em conserva, pra demorar mais...
Lá em casa não gosto de consumir conservas. Tudo vai
fresquinho mesmo. As dores, cruas. As felicidades, colhidas na hora. As tristezas,
mal passadas.
Acredito nisso. E pensei que a minha vida era assim. Até que
ontem, deitada no sofá da sala, comecei a ouvir um rumor. Na TV, Tapas e Beijos.
Do lado de fora, também.
Eu passei a não conseguir mais ouvir a televisão (que,
aliás, mostrava dois amigos indo às vias de fato) pra só ouvir o drama através
da porta. Era Nelson Rodrigues misturado com Ariano Suassuna, pincelado com
requintes de Clarice Lispector... Quer saber? Era vida real.
Desliguei a TV.
Uma puta. Um garanhão. Um marido corno. Um frango. Uma mulher
traída.
Cena de abertura:
A mulher marca um encontro com o amante enquanto o marido
trabalha. Ele chega mas, nem tão discreto assim, chama a atenção do vizinho gay
que é apaixonado por ele. De vingança, o vizinho vai direto falar com a esposa
do Ricardão. Corta.
Cena dois:
A mulher traída, ao invés de ir “dar o flagrante”, liga pro
marido da outra. Ele, que trabalha em Cavaleiro, pega três ônibus pra chegar em
casa e vem inflamado. Invade a casa do cabra safado do amante e desce o pau.
Corta. A cara dele.
Cena três:
A esposa do amante vai bater na casa da dita cuja. Arranca a
distinta pelos cabelos e dá-lhe uma sova ali mesmo, no meio da rua. Junta
gente. A gritaria é imensa. Alguém joga uma pedra que espatifa uma vidraça.
Cena quatro:
A polícia chega. E o povo começa a gritar:
Cardinot!Cardinot! Tenho vontade de rir, mas a coisa é séria. Não dá pra zoar.
O tal do delator, motivador de tudo, quer agora descobrir quem chamou a polícia.
Os ânimos se acalmam, mas vai o lote todinho pra delegacia.
Cena cinco:
Cinco da manhã. Levanto e vou ao quintal… O Ricardão chora
copiosamente. É um homem imenso. Ouço seu lamento do outro lado do muro. Uma
voz de mulher o consola.
Cena seis:
O dia amanhece. Vou comprar o pão. Gente, gente, gente! O sol
fica quente. O moço se queixa na calçada. Diz que perdeu a cabeça, que nunca
tinha sido fichado na delegacia.
Cena sete:
Volto pra minha vida, pro meu mundinho. Mas não ficou igual
não. Descobri que a vida pode ser ainda mais visceral, mais intensa, mais perigosa,
mais aventureira. E quer saber?
Prefiro a minha mesmo. Justinho assim. Cheiro de vida doce,
de alma lavada, de trabalho realizado. Rotina de rotina. Fico segura no meu
programa diário.