Era eu.
Eu, vestida numa saia de forro dourado e umas pérolas bem falsas aplicadas no tule preto, que eu comprei numa loja evangélica na rua Nova. Eu, com a tal saia sacra, com uma blusinha de lamê dourada frente única profana, que eu comprei na costureira da esquina. Eu, com a saia sacra, a blusa profana, o coração de quem já tem mais da metade da vida de carnavais brincados, pulados, amados, poetizados. Eu, com a roupa sacro-profana na festa mais mundana do calendário religioso. Uma pena lilás na cabeça, e cílios postiços da mesma cor, e meia arrastão fazendo o degradê. Para completar, maquiagem preta e roxa, feita por mim e finalizada pelas amigas que foram no esquenta tomar a sopa da sustância lá em casa. Sapatilha lilás nos pés que já completava três carnavais.
Eu, vestida numa saia de forro dourado e umas pérolas bem falsas aplicadas no tule preto, que eu comprei numa loja evangélica na rua Nova. Eu, com a tal saia sacra, com uma blusinha de lamê dourada frente única profana, que eu comprei na costureira da esquina. Eu, com a saia sacra, a blusa profana, o coração de quem já tem mais da metade da vida de carnavais brincados, pulados, amados, poetizados. Eu, com a roupa sacro-profana na festa mais mundana do calendário religioso. Uma pena lilás na cabeça, e cílios postiços da mesma cor, e meia arrastão fazendo o degradê. Para completar, maquiagem preta e roxa, feita por mim e finalizada pelas amigas que foram no esquenta tomar a sopa da sustância lá em casa. Sapatilha lilás nos pés que já completava três carnavais.
Eu, toda paramentada para a festa sagrada. A concentração
do bloco na frente da igreja da matriz. Tanta gente linda! Minha licença poética
de ver o mundo todo decorado de luz e brilho. Começa a orquestra, rasgando a Rua da Imperatriz, abrindo caminhos entre os sobrados. Um bloco inesquecível
como tantos. E o milagre do carnaval. Festa sagrada tem que ter milagre. Da vida. Das pessoas. Permita-me o
lirismo, essa sou eu... você já sabe.
E a chuva vem batizar o cortejo, a procissão frenética. As gotas
desmantelam os cílios postiços. Devem estar agindo na purpurina preta
brilhante que desenha ondas no meu rosto. Pouco importa. Me meto no meio do
furdunço da orquestra. Aquele aperto, aquele limite entre o desespero
de não poder sair e a alegria de querer que ficar. Canto em coro alucinada “ai meu
bem sem vocêee não há carnaval, vamos cair no passo e a vida gozar...” e a
sapatilha do pé direito, já encharcada, ganha outro rumo. Não demora e a outra
também é arrancada do meu pé. Saio da massa de gente toda feliz, perdi a
sapatilha de três carnavais. Foi momo quem levou. Piso nas pedras da Imperatriz,
cruzo a ponte de ferro. A esta altura, não sabia onde estavam os amigos, não
sabia onde estava meu amor. Carnaval, esqueci de dizer, pra mim é melhor com o
amor.
Com tanta expertise no assunto, continuei o desfile feliz. Sem
sapato...sozinha pela multidão. Aproveitei o descanso da orquestra (tocador quer beber),
ali pertinho da Guararapes, procurei um cantinho mais resguardado e tirei de
dentro da saia sacra (ou já estaria profana?) uma bolsinha para tentar ligar para
alguém. Tudo molhado. Tanto, que quando puxei o celular, vieram junto,
grudadinhas, duas notas de 20 contos..O dinheiro caiu no
chão. Antes mesmo que eu pegasse, um mané que passava se
atravessou e resgatou as cédulas. Eu falei “moço, este dinheiro é meu”.
E ele, mais malandro impossível: “prove que é seu”. Tudo o que eu tinha. Quis provar nada. Ele se
foi. E eu ainda sob o efeito do espírito carnavalesco, fiquei sem sapato e sem
dinheiro em plena Guararapes... A chuva benzia tudo.
Uma senhorinha chegou junto de mim:"Tava aqui catando as latas, mas vi tudo". E eu: "pois é.... ", toda lesa. Ela
se ofereceu para me pagar uma coca, ficar comigo até aparecer alguém conhecido.
Coisa linda! Trocamos umas frases, uns sorrisos e a companhia.
Não demorou,
passou uma galera. Abracei aquela anja, caí no frevo. Os amigos já me deram 10
reais.Tô no lucro!!!!! Segui cantando, dançando...num deu muito tempo, encontrei meu amor.
Oba!!!! gente se encontra e se desencontra mas não se perde.
A gente só perde o que não é nosso, dizem por aí... filosofia barata à parte, passamos frevando pela Pracinha do Diário. E mais uma ponte, abrindo alas para a entrada na Ilha do Recife.
Gosto
particularmente da Ponte Mauricio de Nassau. Ela tem cheiro de maresia. Rio e mar se misturando numa dança sem fim. Parece a gente no meio da orquestra. Deve ser o frevo
da água salgada do mar com a água doce do Capibaribe. Eita Recife!!!!
Poesia à parte, meus pés já começavam a doer. É que as
pedrinhas do asfalto da ponte são pequeninas. Machucam pra valer. Já tava
cogitando voltar pra casa, a meia lilás ficando preta... Aí encontro uma amiga
no pé da ponte. No meio da conversa, ela vê meus pés descalços, saca da mochila
um par de sandálias e me dá. Meu númeroooooo!!! E ainda combina com minha
fantasia!!!
No meio do bloco, voltei a pular. Tudo que é meu, pra mim
voltou. O carnaval que embriaga de alegria, também abraça e aquece o coração. Meu
conto, minha história da vida normal, meu milagre diário. Salve o meu
carnaval!!!!