Havia uma certa arrogância na forma como ela usava aquele
perfume francês. Uma displicência, ou seria um desleixo... Anos a fio usando o
mesmo perfume, de domingo a domingo, na tentativa de imprimir uma
personalidade, uma marca. Triste objetivo!
Pra dentro, lá no fundo, ela sabia da sua insegurança. Tinha
medo de falar, de expor as ideias. Tinha medo da própria alma de artista que,
de quando em vez, escapava e se anunciava pela boca. Mas a voz parecia agarrada
na garganta, perdia a potência a cada vez que ela falava de si. Era tanta
dissimulação que às vezes nem ela mesma sabia o que estava vivendo. Quando tentava
falar, as mãos gelavam instantaneamente. Melhor não.
Havia uma certa arrogância, sim, de creditar ao perfume
Kalvin Klein, francês (como é isso mesmo???), um traço da sua personalidade. Essa
coisa imaginária, que um produto qualquer que seja, possa te traduzir.
A arrogância da imaturidade, que teima em rotular. Quem tem
rótulo é perfume, aliás. Gente não deveria ter. Aquele vidro sinuoso, que
lembrava o símbolo do oito deitado, do infinito, era a imagem da sua prisão. Infinita.
Uma prisão de prata e com o líquido lilás. Uma prisão que aumentava à medida em
que o conteúdo do frasco se esvaía. Evaporava junto com a sua certeza.
Pensando bem... não era “certa arrogância”.
Era pura arrogância. Um extrato concentrado.
Só que travestida de elegância, fantasiada de alma
minimalista. O nome do tal aroma? Euphorie. Traduzindo: Euforia.
Euforia.
Atitude, sentimento, saída de emergência para os corações
inquietos.
Euforia, a alegria superficial.
No seu dicionário, euforia poderia ser definida como escudo.
Um estado de alma para quem vivia em estado de sítio.
Por décadas, o aroma chegava antes dela. Era sol, era
chuva... era feira ou casamento. Ela usava o mesmo perfume. Talvez, a única
constância no seu estado de espírito.
Colecionava os vidros vazios, de vários tamanhos. Chegou um
tempo em que ela nem comprava mais o perfume. Quem viajava pra fora já sabia o
presente que deveria trazer. As amigas sugeriam cremes, hidratantes, vitaminas,
eletro eletrônicos. “Traz um vidrinho de euforia pra mim?”, ela humildemente
sugeria.
Um vidro de euforia. Uma dose modesta, ministrada em
borrifadas diárias. Uma droga que talvez sua porção infantil como um super
poder.
Até que um dia, o perfume foi ficando pesado. Pesava nas
roupas. Uma coisa parecida com uma cola. Foi deixando a euforia da arrogância
de lado. O que ela iria colocar no lugar???
Parou de pedir as encomendas internacionais. Uma vez pediu
uma caixinha de música que tocasse “What a Wonderful Word”. Meio esquisito...
Passou a usar o perfume somente quando saía pro trabalho,
“pra economizar”. Sentia nas suas roupas guardadas, repentinamente, o toque
meio adocicado e aquilo em algum lugar alfinetava. A arrogância persistente do
aroma trazia um incômodo profundo.
A sensação de nunca sair do lugar.
Deixou acabar o último exemplar do estoque. Uma coisa
qualquer não fazia mais sentido.
Ficou sem cheiro. Passou a sentir seu próprio cheiro, aliás.
Era muito novo.
Sem contorno.
Seria ela?
Foi na farmácia da esquina e comprou uma lavanda. Gostou de
usar em plena luz do dia uma lavanda tão comum. “É ótima pra ir à feira”, ela
definiu.
No dia seguinte, acordou e quando já ia saindo pro trabalho,
da porta, voltou. Olhou pro vidro de euforia vazio. A coleção de vidros inúteis na
penteadeira, como um memorial da sua vida.
Foi ali no armário do banheiro, abriu o frasco de plástico
transparente esverdeado e aplicou no cangote, nos pulsos e depois esfregou as
mãos uma na outra. O mesmo gesto repetido por décadas. O mesmo gesto mecânico.
Quem vai me rotular agora?
Estava sem o escudo... ou seriam as muletas?
Deu os primeiros passos desconfiada. Foi experimentando
outras essências. Foi brincando de cheirar, de sentir. Eram outros tons e cores
e notas.
Um dia, como se nada mais fizesse sentido, pegou um saco
grande de lixo, aqueles de plástico fosco preto, colocou todos os vasos vazios.
Embalagens e rótulos de um tempo vivido. Deu um nó e levou pra área de serviço.
“Amanhã passa o lixo e levo lá pra fora”, pensou quando
fechou a porta da cozinha. Tanta coisa guardada por tanto tempo, tanto tempo
guardando tanta coisa! Ela tentava afugentar o trocadilho infame do luxo e do
lixo. Do lixo luxuoso...
Não havia euforia na sua atitude. Sua busca mais profunda
começara naquele instante. Seria preciso ter faro e sensibilidade para as novas
fragrâncias da vida. É preciso achar um perfume menos forte pra identificar
onde cheira mal.