Vou começar pelas ancas. Aquelas fartas, curvas, fora do padrão. As que abrigaram os rebentos. As mesmas, redutos da paixão. Caverna ensolarada que guarda desejos. Sou uma mulher de um metro e meio e quase um metro de ancas.
Afino pra cima. O busto não representa tanto. Tenho a alegria de chegar aos 50 e gostar de mim. Lembrar que estes peitos alimentaram vidas, último fio de elo físico com as crias. Estão aqui, nem tão firmes, mas fortes. Sou uma mulher completa na minha contradição. Poesia abstrata,na pele concreta.
No rosto, lábios grossos e grandes, nariz de porrote e olhos pequenos. Sou uma mulher comum, fruto da mistura. Meus olhos verdes no cabelo escuro. Uns cachos nas pontas, ondulado a silhueta, batendo na nuca. Minhas mãos pequenas nas coxas grossas. Os tornozelos roliços, os braços finos, o osso do punho proeminente.
Calço 35. Sutiã P, calcinha M. Uma mulher inteira desigual. Dizem que deveria ter crescido mais. Desconfio que se cresci, foi pra dentro. Nas entranhas é que estão as profundezas. É aí que fico maior, neste vasto campo minado e florido. Neste latifúndio sem reforma agrária que é o sentir. Um feudo a ser explorado, pasto infinito de ideias e sensações.
Sou uma mulher pequena e mediana. Repito rotinas buscando aterrar. Sou ar. Gêmeos, ascendente Aquário, lua em Libra. Disseram outro dia que não deveria estar viva. Deve ser porque gosto de voar. E, sendo assim, de pousar.
Gosto de mesa posta, de comida cozinhando, do cheiro do feijão perfumando a casa, das risadas que saem de momentos displicentes. Não faltam gás, coragem e alma. Esta última segue caminhando com cicatrizes, marcas, memórias e algumas dores. Carrego a mulher que sou.
Me sobra crença. Meu estoque de fé veio no atacado. Não sou do varejo. Sou insistente, cultivo a teimosia, semeio minha opinião. Mudo de lugar, ponto de vista, que nem o sol ao longo do ano. E choro como a chuva de maio, mês que me recebeu neste mundo. Aprendi a chover de alegria e de tristeza, de emoção e de pesar. Aprendi a desaguar e inundar, conforme a maré.
Nasci numa cidade de pedra e mar. De lama e mangue. De arte e desigualdade. Quebro as ondas nos arrecifes como o oceano em Boa viagem. Vou esculpindo o espírito. Vou queimando a pele, vou desidratando.
Quando me deparo com o espelho, vejo muito mais do que escrevo agora. Vejo passado e presente pulsando num diálogo que adivinha o futuro. E nada vejo, ao mesmo tempo. Os olhos mais cansados, perdem os detalhes, escondem as pistas do tempo. Sinto que me perco, antes de achar, nenhuma certeza.
Meu autorretrato se faz a cada dia. Não ouso assinar embaixo, não reconheço firma. Não sou conclusiva. As águas que no meu corpo correm já passaram por todas as veias, tantas vezes e não são as mesmas. Vida, esta duna que é levada pelo vento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário