segunda-feira, 22 de junho de 2015

Estelita. Da glória





Na porta aberta da minha casa, para um carro.
- Olá, bom dia! Este é o número 310?
- É sim. Eu moro aqui.
- Morei nessa casa. Vim do interior para estudar e esta era uma pensão. Fui tão feliz nesta casa!!!
- Assim como eu sou hoje!
- A dona desta pensão chamava-se Estelita.
Minha voz embargou. Estelita ocupou a Glória. Em 1963!!!!
Na viela sinuosa, que imita o curso de um rio, a vida passa sob o sol. Uma rua orgânica, o curso da água, o curso da vida. Uma rua vestida de sol. Aqui não há sombra. O sol banha cada pedra, ilumina as fachadas. Varais dão conta do cotidiano.
Casas de gente com riso aberto nunca estão fechadas. Carregam em sua alma, portais. Histórias banais, pequenos romances, amores perdidos, tristezas imensas estão armazenadas em suas paredes, em cada ladrilho. Janelas abertas para o tempo, passagem.
E como compete aos viajantes do tempo, uso da licença poética para contar uma história que também é minha.
Ela não devia ser alta. Nem muito feliz. Nem triste. Serena. Riso plácido. Imagino um coração grande, crescido de vida. Um espírito de acolhimento andando pela casa comprida, pisando no ladrilho hidráulico verde e azul. As flores desenhadas no chão com ares de jardim. Um tapete desgastado pelos tantos visitantes no tempo. Era tapeçaria rara, trabalho de artesão.
Na esquina com a Leão Coroado o Clube Lenhadores fazia suas tertúlias. À frente estavam os cânticos do convento. Era um caldeirão cultural. A rua dos judeus. A rua dos estudantes. A rua do Lenhadores. A rua da Glória.
Como uma foto de família, uma carta de amor, um tecido estampado, também a história desbota. Deixa pistas, marcas, pequenos traços. Um roteiro sutil para observadores atentos. A música silenciou. Lenhadores fechou. As fachadas descascaram. O convento se recolheu.
De testemunha, a memória, a história e os ladrilhos hidráulicos. Da Glória, restou a alcunha. E quem enxerga através da lente do passado?
Casas sem teto. Rua sem dono.
E quem enxerga através da lente do passado?
O Recife cresceu. Verticalizou. Migrou.
Não é só gente que é vítima de preconceito. O bairro no coração da capital virou marginal. 
Amamos a casa sem teto. Criamos varanda, criamos quintal. Chuva tamborilando no telhado. Passarinho de mudança para o Pau Brasil. Flores no jardim, hera no muro.
Ocupamos com amor. Ocupamos com cheiro de comida. Ocupamos com as crianças rindo na hora do café da manhã.
Esta Rua sempre foi nossa. Mesmo antes de existirmos. Toco meu piano, abro a janela e declaro minha paixão. Não importa quem ouve. Faço um afago à história. Respiro sua vida.
Glória!









2 comentários:

Simone disse...

Uma belíssima manifestação de amor à casa, à rua e ao bairro! Prosa poética de altíssimo nível!

Germana Accioly disse...

Obrigada querida!!vem vinda!

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