Eu sempre achei esquisito este modo
contemporâneo e capitalista de comprar comida. Você chega em um supermercado. Pega
um carrinho. Coloca tudo o que deseja dentro do carrinho. Depois vai pra fila
do supermercado. Coloca tudo o que escolheu na esteira para pagar. Coloca tudo
dentro de uns sacos. Tudo no carrinho de novo. Depois, organiza na mala do
carro. Chega em casa, tira tudo dos sacos e arruma na geladeira e na despensa. Lava
as frutas, abre os saquinhos dos mantimentos e coloca nos vidros. E então
começa a consumir. Isso se antes, dentro do carro mesmo, não já tenha atacado
um pacote de biscoito....
Desse
processo meio burro, mas que até hoje repito - e olha que já faz uns 30 anos
que vou ao supermercado praticamente toda semana - tem uma etapa que eu adoro: a fila do
supermercado.
Feira
é coisa íntima. No carrinho estão as nossas atitudes, os nossos hábitos, os
nossos vícios. Estão alguns desejos secretos, quase todas as manias. Todos
rotulados, pesados, etiquetados, enlatados, prontos para serem consumidos. Você olha pro
carrinho alheio, tentando preservar o seu. Tem gente menos discreta que vai
logo perguntando:
- O que você faz com este cogumelo?
E presta?
Tem outros mais cordatos:
- Teria uma receita? Como se
prepara?
E então você discorre
detalhadamente sobre o “Mode d’emploi”, mesmo sabendo que nunca, jamais, em
tempo algum, aquela pessoa vai se deter meio minuto que seja sobre aquela
informação.
Muitas
vezes, destas orientações furtivas, saem conversas mais profundas. Sim,
profundas! Tem coisa melhor do que falar de intimidade com um desconhecido? Uma
pessoa que nunca mais vai te encontrar? Que nunca vai abrir tua geladeira?
Lembro
que, quando eu morava na França, fazia sempre as compras no FranPrix, um mercadinho bem popular.
Mais barato, muitos imigrantes, muita solidão. As filas eram gigantes. E ali,
numa terra estrangeira, a gente se soltava mais. As africanas falavam sobre
suas receitas, ingredientes que eu jamais cheguei a provar. As indianas
discorriam sobre as famílias imensas. Eu falava da minha saudade – palavra que
só eu sabia conjugar- e sobre o que sentia naquele país.
Vez por outra, uma olhava pro
carrinho da outra e perguntava:
- Este iogurte é bom? Seus filhos
gostam?
- Vale a pena comprar este salame?
Perguntas com respostas sempre
regadas a novas receitas – de vida e de panelas.
Em Brasília era curioso. Comprava muita coisa na mercearia japonesa. Rótulos que não sabia ler. Mudei meus hábitos. Acostumei a experimentar. Preferia comprar tudo a pé mesmo. Ali eu aprendi histórias de forasteiros. Receitas misturadas de todo o país. E tanta sacola!
Hoje moro na rua
da Glória, no centro do Recife. Uma rua que abriga o único centro islâmico da
capital, num momento em que muitos africanos estão chegando para tentar vida
nova. A rua que já foi o porto dos judeus. Que hoje é meu endereço afetivo.
Frequento o
mercadinho do bairro. Frequento o supermercado fino.
Compro coalho no
mercadinho e mostarda no mercado de grife.
Outro dia uma
africana vestida com aquelas vestes longas, com estampas tribais, me confidenciou, sussurrando com seu português quase incompreensível:
- Ontem joguei
meio quilo dessa carne fora, porque não sei fazer. Não tive coragem de colocar
na mesa, disse, aproveitando pra analisar meu carrinho.
Dei algumas orientações, truques,
algumas sugestões de acompanhamento e de preparo.
Ela
estava na minha frente, passou suas compras e eu fiquei. A caixa do
supermercado me disse:
- A gente que é daqui tem mesmo que
ajudar. E atalhou: - A senhora hoje não está tão bem não é?
Ali me senti acolhida. Passando o coalho e o limão, dei um
risinho e falei que toda araruta tem seu dia de mingau. Agradeci, digitei minha
senha do cartão. Saí até melhor.
Dessa
vez trouxe as compras na mão, nos saquinhos reforçados pelo empacotador que se ofereceu pra me acompanhar até em casa.
- Precisa não, ta tranquilo.
Mas, aí, já é outra história.....
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