Um grito rosnou forçando o silêncio da noite. Era
desesperado, era quase uma loa. O grito passeou pela rua e não vi a sua voz.
Era claro o tom de mulher. Era nítida a sua emoção. Fui até a janela do quarto
e a rua estava vazia de pessoas. Mas o grito voava entre as árvores do parque.
Eu senti como se fosse um desabafo. E era meu também. Era do
meu filho e dos meus amores todos. Senti como se fosse a tentativa de sair de
um aperto.
A metáfora que me veio imediatamente foi a da sensação de
tirar o sutiã no meio do dia. Você passa a manhã no trabalho e nem sente que
está apertada. Quando vai chegando em casa pro almoço, sabe-se lá porque cargas
d’água, o tal começa a incomodar. No elevador você tem ânsia de já ir se
livrando. Quando chega em casa, tira os sapatos a caminho do quarto e desataca
o sutiã ali mesmo, no corredor. Tira por dentro da roupa, por entre as mangas
das camisas. Um desespero que não se explica. Você está na intimidade do seu
lar. A comparação pode até ser banal, mas a sensação de alívio é das mais
justas que já senti na vida.
Aquela mulher esgaçando o tecido da noite com seu desabafo
me pareceu de uma urgência, de uma pressa, de uma carga vital imensa. Ela
gritava à capela. Não tinha batucada, não havia palmas. Não havia nenhuma outra
manifestação de apoio ou de repulsa.
O grito passou, mas dormi com ele. Acordei com ele, fiz o
café com ele e até agora ele me faz companhia, protestando nos meus miolos.
Vamos continuar protestando, aliás? Vamos seguir resistindo?
Vamos logo renovar os passaportes pra sair dos limites físicos da nação, sendo
que ela segue conosco tatuada, feito cicatriz, queloide, risco, em todo lugar?
O grito que não escuto mais, ecoa agora no meu peito,
liberto das amarras. Sigo pelas ruas tentando ainda fazer parte delas. Os
ônibus que freiam, a ambulância que soa e o caminhão do gás que toca seu sino
atravessam meu caminho mas não tanto quanto aquele pregão insone.
- Idiotas! Idiotas! Idiotas!
E o valor ecoa firme.