segunda-feira, 29 de outubro de 2018

grito


Um grito rosnou forçando o silêncio da noite. Era desesperado, era quase uma loa. O grito passeou pela rua e não vi a sua voz. Era claro o tom de mulher. Era nítida a sua emoção. Fui até a janela do quarto e a rua estava vazia de pessoas. Mas o grito voava entre as árvores do parque.
Eu senti como se fosse um desabafo. E era meu também. Era do meu filho e dos meus amores todos. Senti como se fosse a tentativa de sair de um aperto.
A metáfora que me veio imediatamente foi a da sensação de tirar o sutiã no meio do dia. Você passa a manhã no trabalho e nem sente que está apertada. Quando vai chegando em casa pro almoço, sabe-se lá porque cargas d’água, o tal começa a incomodar. No elevador você tem ânsia de já ir se livrando. Quando chega em casa, tira os sapatos a caminho do quarto e desataca o sutiã ali mesmo, no corredor. Tira por dentro da roupa, por entre as mangas das camisas. Um desespero que não se explica. Você está na intimidade do seu lar. A comparação pode até ser banal, mas a sensação de alívio é das mais justas que já senti na vida.
Aquela mulher esgaçando o tecido da noite com seu desabafo me pareceu de uma urgência, de uma pressa, de uma carga vital imensa. Ela gritava à capela. Não tinha batucada, não havia palmas. Não havia nenhuma outra manifestação de apoio ou de repulsa.
O grito passou, mas dormi com ele. Acordei com ele, fiz o café com ele e até agora ele me faz companhia, protestando nos meus miolos.
Vamos continuar protestando, aliás? Vamos seguir resistindo? Vamos logo renovar os passaportes pra sair dos limites físicos da nação, sendo que ela segue conosco tatuada, feito cicatriz, queloide, risco, em todo lugar?
O grito que não escuto mais, ecoa agora no meu peito, liberto das amarras. Sigo pelas ruas tentando ainda fazer parte delas. Os ônibus que freiam, a ambulância que soa e o caminhão do gás que toca seu sino atravessam meu caminho mas não tanto quanto aquele pregão insone.
- Idiotas! Idiotas! Idiotas!
E o valor ecoa firme.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Menos pesar


Não espere que ninguém chegue junto. Não pense que qualquer apelo vale como estímulo. Que as pessoas vão se colocar no seu lugar, ou que vão entender a sua dor. A melhor decisão depois da grande decisão é esperar a demanda, sem expectativa.
Sente, medite, ligue pra alguém. Mas não espere nada em troca. Não se troca afeto. Se acumula, se agrega. Amor não muda de dono. Não se vende. A escritura mais legítima é o sentir. A gente segue buscando nos carimbos, nos rituais e nas alianças a legitimação dos sentimentos. A gente insiste em reconhecer a firma do amor. A gente blasfema e maldiz o que ama.
Sente, medite, entoe um mantra. Mas não se fie que alguma mão vai ser dada. Em tempos duros de redes sociais, um emoticon vale um abraço. Serão raras as pessoas que chegarão perto, dispostas a te dar colo. Melhor entender que dois beijinhos com olhos de coração são o melhor que as pessoas têm.
Não se arrete com os amigos que não retornam. Não se amole com as palavras pela metade no zap. O silêncio fala mais, muito mais do que a agenda do final de semana.
Eu sigo na minha paisagem. Do lado de fora tem o Recife: mar, Rio, mangue e pôr do sol. Lá fora, mil e uma razões para voar.
Olho as garças pousadas no Capibaribe. Juntas formam um bordado, vistas aqui do décimo quarto andar. Elas não pesam. Elas pousam sobre os galhos do manguezal. Desejo aprender a pesar menos.
Menos pesar.
Mais pousar.
Sente, medite, ouça uma música. A lição primeira é aprender a ser só. Ouvir com alegria o silêncio da casa. Receber com paz o vazio que o rompimento deixou. Acolha-se, perdoe-se e se acalente.
Menos pesar.
Mais pousar.

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

fAlTa MuItO






São tempos difíceis. 
São tempos difíceis.
Eu ainda não sei falar da revolução dentro de mim, nem do golpe lá fora. 
Ou seria o golpe dentro de mim e a revolução lá fora....
Eu ainda não sei.
Falta muito.
Ainda não sei escrever sobre este rebuliço, este gesto largo e firme que me trouxe a esta paisagem estonteante.
Ainda não sei me situar com as novas gavetas.
Onde guardo os talheres, onde estão os colares, o saca rolhas, o pano de chão?
Onde acomodo meus gestos viciados, onde dobro minhas memórias já passadas?
Falta muito.
Eu ainda olho para as cadeiras da sala como uma turista. Esqueço onde fica o lixeiro e não tenho nenhuma intimidade com a máquina de lavar.
Não aprendi o tempo do elevador. A viagem do 14º até o térreo me parece intercontinental.
Tenho atravessado mares, a propósito. Todos os dias.
Onde devo ter guardado aquela extensão?
Onde se esconde a chave do carro?
Qual é o abrigo das minha dores?
As paredes ainda em branco reverberam um eco que intriga.
Casa sem memória, guardando todas as histórias que eu trouxe de endereços passados. 
Juntando tudo, não dá nem a metade de mim.
O restante, vai que está entre os guardanapos, ou quem sabe, no armário da área de serviço. Escondido em alguma sacola de plástico...
Falta muito.

Horizonte

 Pausar.  Simples e necessário! Tempo restaurador. Arrumar as gavetas da cabeça, acariciar a alma, alentar as dores, afagar os prazeres. Fec...