Pra começar, é melhor falar daquela função da arte, que mexe com as nossas tripas. Remexe com as avessas das entranhas e quando a gente sai, ainda fora do lugar, tem certeza de que jamais será a mesma. Pra começar, é importante falar ainda daquela outra função da arte, aquela que nos leva a lugares imensos, horizontes infinitos, mas que faz tudo isso enquanto se está sentada numa poltrona.
Não sei o tudo que se escondem
nas malas. E não me refiro ao que podemos decifrar nos aparelhos ultrassensíveis
de raio-x, mas dos lugares seguros que deixamos, dos sentimentos cuidadosamente
dobrados, das saudades ensacadas a vácuo, das dores que colecionamos. Fugimos e
refugimos tantas vezes. E a cada vez, escondidas nas valises, as memórias
seguem conosco.
Foi nesta paleta de sentimentos
que sentei hoje na primeira fila à esquerda, pertinho do som, lá no teatro Apolo
Hermilo. O texto do espetáculo, eu não conhecia, nem me dei ao luxo de
pesquisar antes de ir. “Alguém pra fugir comigo”. Sugestivo.
Eu ando fugitiva. Eu ando
refugiada na minha cidade. Buscando novas rotas, inaugurando outros atalhos. Fugir
sempre me pareceu uma coisa esquisita, mesmo quando vitalmente necessária. A
gente foge dos nossos medos, mas traz cada um deles muito bem guardados. A
gente se refugia, se reinventa, muda de lugar e, quando menos espera, um cheiro
nos transporta pra origem, pra onde não queremos voltar.
A propósito, há 7 meses eu fugi. Desta
vez, fisicamente. Desta vez, uma fuga não exatamente planejada. Mas o roteiro já
vinha se desenhando fazia um tempo. Fugi pra não me perder de mim. Desde então,
sigo as minhas pistas. Venho me reencontrando com alguns fragmentos, com
rompantes de quem eu sou. Fugi com duas malas pequenas. Tive dez minutos para
planejar o que colocar nas malas e pra onde ir.
As malas vermelhas foram minha
morada por meses. Foi revelador abri-las a cada dia e me descobrir um pouco
mais. Numa delas, sabe-se lá porque, só havia roupas íntimas. Mala vazia, cheia
de intimidades.
Na segunda, um pouco maior, um
coletivo de desencontros. Um arremedo de enxoval para a vida nova. O passaporte
para eu ser o que quisesse, combinando o que não se imagina. Análise
combinatória.
E eu entrei com a minha bagagem
naquela casa de espetáculo. Não pesava. Não doía. E na primeira cena, um
incômodo. Desejei sair. Desejei não ver o drama de Liberdade. Desejei muito ter
chegado atrasada.
Meu corpo dialogando com o corpo
do elenco, os olhos vidrados, mútuos.
Fui assediada em ônibus, fui
estrangeira, fui menino e mulher. Morri e renasci. As malas mudando de lugar. As
roupas, chapéus e sombrinhas adornando meu espelho. Eu não consigo entender sua
lógica.
Não quero mais. Não me chame pra
ver. Não quero ver a trans preta ser abusada. Não quero testemunhar o
preconceito contra os corpos. Não quero, nesta lente de aumento do teatro, enxergar
melhor.
Há quem viva, há quem morra. A
cidade de 100 anos atrás não é a mesma de hoje. Quem dera eu guardasse nas
pedras da casa que abandonei algo de mim. Meu código energético que se funde
com o morador de rua do Recife. Que se nutre da poesia marginal, que se enrosca
no meu presente. E daqui a pouco não serei nem eu.
Serei mais um dos passantes fugindo
do tempo, esperando e desesperando os ônibus.
A esta altura, o maior desafio
era sentar na primeira fila, porque chorar não era mais uma opção. Saí depois
dos aplausos, mas eis que o espetáculo veio comigo, na minha bagagem.
E eu acabei descobrindo que só se
foge sozinho, mesmo se alguém vem junto.