domingo, 17 de março de 2019

Alguém pra fugir comigo







Pra começar, é melhor falar daquela função da arte, que mexe com as nossas tripas. Remexe com as avessas das entranhas e quando a gente sai, ainda fora do lugar, tem certeza de que jamais será a mesma. Pra começar, é importante falar ainda daquela outra função da arte, aquela que nos leva a lugares imensos, horizontes infinitos, mas que faz tudo isso enquanto se está sentada numa poltrona.
Não sei o tudo que se escondem nas malas. E não me refiro ao que podemos decifrar nos aparelhos ultrassensíveis de raio-x, mas dos lugares seguros que deixamos, dos sentimentos cuidadosamente dobrados, das saudades ensacadas a vácuo, das dores que colecionamos. Fugimos e refugimos tantas vezes. E a cada vez, escondidas nas valises, as memórias seguem conosco.
Foi nesta paleta de sentimentos que sentei hoje na primeira fila à esquerda, pertinho do som, lá no teatro Apolo Hermilo. O texto do espetáculo, eu não conhecia, nem me dei ao luxo de pesquisar antes de ir. “Alguém pra fugir comigo”. Sugestivo.
Eu ando fugitiva. Eu ando refugiada na minha cidade. Buscando novas rotas, inaugurando outros atalhos. Fugir sempre me pareceu uma coisa esquisita, mesmo quando vitalmente necessária. A gente foge dos nossos medos, mas traz cada um deles muito bem guardados. A gente se refugia, se reinventa, muda de lugar e, quando menos espera, um cheiro nos transporta pra origem, pra onde não queremos voltar.
A propósito, há 7 meses eu fugi. Desta vez, fisicamente. Desta vez, uma fuga não exatamente planejada. Mas o roteiro já vinha se desenhando fazia um tempo. Fugi pra não me perder de mim. Desde então, sigo as minhas pistas. Venho me reencontrando com alguns fragmentos, com rompantes de quem eu sou. Fugi com duas malas pequenas. Tive dez minutos para planejar o que colocar nas malas e pra onde ir.
As malas vermelhas foram minha morada por meses. Foi revelador abri-las a cada dia e me descobrir um pouco mais. Numa delas, sabe-se lá porque, só havia roupas íntimas. Mala vazia, cheia de intimidades.
Na segunda, um pouco maior, um coletivo de desencontros. Um arremedo de enxoval para a vida nova. O passaporte para eu ser o que quisesse, combinando o que não se imagina. Análise combinatória.
E eu entrei com a minha bagagem naquela casa de espetáculo. Não pesava. Não doía. E na primeira cena, um incômodo. Desejei sair. Desejei não ver o drama de Liberdade. Desejei muito ter chegado atrasada.
Meu corpo dialogando com o corpo do elenco, os olhos vidrados, mútuos.
Fui assediada em ônibus, fui estrangeira, fui menino e mulher. Morri e renasci. As malas mudando de lugar. As roupas, chapéus e sombrinhas adornando meu espelho. Eu não consigo entender sua lógica.
Não quero mais. Não me chame pra ver. Não quero ver a trans preta ser abusada. Não quero testemunhar o preconceito contra os corpos. Não quero, nesta lente de aumento do teatro, enxergar melhor.
Há quem viva, há quem morra. A cidade de 100 anos atrás não é a mesma de hoje. Quem dera eu guardasse nas pedras da casa que abandonei algo de mim. Meu código energético que se funde com o morador de rua do Recife. Que se nutre da poesia marginal, que se enrosca no meu presente. E daqui a pouco não serei nem eu.
Serei mais um dos passantes fugindo do tempo, esperando e desesperando os ônibus.
A esta altura, o maior desafio era sentar na primeira fila, porque chorar não era mais uma opção. Saí depois dos aplausos, mas eis que o espetáculo veio comigo, na minha bagagem.
E eu acabei descobrindo que só se foge sozinho, mesmo se alguém vem junto.

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