quinta-feira, 20 de junho de 2019

Rebento

Acordou em dúvida se aquele beijo, há trinta anos atrás, tinha realmente acontecido. Se aquela música tinha tocado, se ele tinha chamado ela pra dançar. E se tivesse? O que mudaria? Qual a força da realidade? Ou, por outro lado, qual a herança que carregamos pelo não acontecido? Pelo que ficou pairando por décadas, permeando casamentos, nascimentos, mortes, separações? A dúvida, ao contrário do que se possa imaginar, não corroía a sua alma. Era pura especulação. Era ela brincando de ser Deusa. Como quem num jogo de tabuleiro planeja a próxima jogada, avalia possíveis caminhos. Ela acordou, passou um tempo maior que o normal na cama, aguçando os sentidos. Tempo pra espreguiçar e acordar uma a uma as células. Tempo de acalentar o pensamento. Tempo pra revirar na mente o dia anterior, dar o play nos momentos que viveu. Tempo....
Todo dia levanta de ótimo humor, cedinho, quase com o sol. Todo dia se rende ao café na mesa com parcimônia. Tudo bem lindo, mesmo que esteja sozinha. Comunga consigo da refeição. Mas hoje não. Hoje ela se deixou levar pela morosidade do alvorecer. Ainda entre os lençóis, decidiu escrever pra ele.
"Meu alvorecer é leve. Bruma que voa ao apelo da brisa mais displicente. O corpo, este registro geral, ainda traz indícios do que fomos. E não mais seremos. E eu sigo leve, grata pelo carimbo das tuas digitais que jaz na minha pele. E eu sigo alegre, pela capacidade de amar e de olhar o mundo quando tudo é possibilidade, e cor, e luz. E pensando assim, somos também tudo isso. Eu sou a flor que abriu mansa. O regozijo que me traz um balanço de rede, balanço de vida, vida afora. Muitas vezes escreverei a palavra VIDA, porque é ela quem vem batendo à minha porta insistentemente, me chamando para bailar, me inquirindo sobre o cadeado que pus na maçaneta. É esta energia vital que não me deixa, não me leva nem me traz. Existe em mim. E quando em teus braços me envolvi, foi a mim mesma que abracei. Foi a minha VIDA que sentiu tanto o prazer de ser, e estar, e exultar, e gozar. E quando em teus braços finalmente vejo a luz, é a minha VIDA que entrego ao mundo, a partir da fusão de nós mesmos. E quando me rendo à fábula de nós dois, é como se encenasse meu futuro. É como se fizesse uma oração ao tempo que virá que sim, seja de amor. Neste ritual de volta ao mundo em que me encerro, já me encontro. Não mais estrangeira de mim nem muito menos longe dos meus. É libertador ver você despojar-se de nós. O seu despertar. A sua persona voltando à vida real. A voz, o corpo, a mente, todos em harmonia e em alinhamento. Poesia concreta. Me percebi espectadora do seu movimento. Um beijo na testa antes de me deixar e se entregar à chuva na beira do rio. Um gesto tão amoroso quanto amigo. A certeza de que o laço não se esvai, mas nossas escolhas ali estavam traçadas. A chuva lavou a alma de qualquer culpa, porque não existe penalidade no sonho.
Dentro de mim, outra revolução se aproxima. Outra concepção de amor. Outra razão de VIDA. Aconchegada na memória do suor, aninhada no peito do êxtase. Para o tempo, este elo marcado na pele, esta energia fundida no amor da tarde que se despede. Vejo a VIDA pela minha lente poética. Ela reluz".
Escreveu, mas não enviou. Fechou o computador esperando que o texto apure. Escrever é sempre uma maneira de temperar os sentimentos. Tem exercitado escrever cartas que jamais serão lidas. Que jamais foram enviadas. Cartas que não terão resposta.
Cartas destinadas a analfabetos, incapazes de ler pessoas.
Nem sempre as respostas chegam. Elas estão em nós. Já habitavam aqui. No mesmo endereço do seu afeto, na mesma gaveta das memórias, no lugar exato da sua dor.
Na cozinha, lavou a cafeteira. Hora de recomeçar. Mesa posta. Gravidade zero.

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Horizonte

 Pausar.  Simples e necessário! Tempo restaurador. Arrumar as gavetas da cabeça, acariciar a alma, alentar as dores, afagar os prazeres. Fec...