Sabe aquela sensação de estar deixando o caixa do
supermercado, com várias sacolas nas mãos e lembrar, num rompante, que esqueceu
de comprar café?
Você interrompe a caminhada por um segundo e só não leva a
mão à testa num gesto mecânico porque está segurando as compras.
- Agora já era.
Hoje acordei na hora, com a sensação de estar atrasada. De ter
esquecido alguma coisa. O corpo dolorido das dores do mundo. Fiquei deitada um
par de minutos, pensando o que fazer da vida.
No dia anterior, fui ao velório de mais uma mulher
assassinada pelo ex-amor... O caixão no meio da capela do cemitério de Santo
Amaro gritava. Por justiça. Mais uma. Menos uma.
Anteontem, no prédio vizinho, aconteceu quase a mesma coisa.
Um golpe do destino fez o agressor errar os 3 tiros. Ele se matou depois.
Eu chego em casa do cemitério meio encerada. Sem sentir
nada. Impermeável. Deito na cama e fico ali atônita. Decido ir caminhar na Jaqueira.
Fui no automático. Tinha um saxofonista na porta do parque tocando umas
músicas... eu caminhei buscando as melodias, que iam e vinham dependendo da
minha localização. Eu não tinha nenhum trocado pra deixar dentro do case dele.
Na volta, vejo na geladeira um abacate maduro, já passando
do ponto. Corto as cebolas em pequenos quadradinhos, deixo de molho no limão.
Amasso com um garfo a polpa do abacate. Corto cheiro verde bem miúdo. Constato que
está faltando tomate... rego a massa de abacate com azeite, sal e bastante
pimenta do reino. Junto os demais ingredientes. Olho em volta e vejo a pimenta
rosa ali dando sopa... misturo no guacamole para dar um toque de cor na pasta
verde degradé.
Cortei umas fatias de pão, arrumei tudo na mesa. E a fome
passou antes mesmo que eu sentasse.
Estava exausta.
Uma dor no corpo chamava a alma. Uma covardia por dentro
clamava por respeito. A minha garganta dolorida de tanto prender o grito.
Me abandonei na cama. Não eram nem sete da noite. Por via das
dúvidas, coloquei o termômetro e a temperatura era 36,2°.
Tudo bem, eu pensei.
Deixei a alma sangrar. Fiquei sentindo a dor da morte destas
mulheres que eu nem conheci.
Acordei hoje ressacada.
Faltava ovo, queijo, leite, fruta. Saí relutante da cama, fui
ao supermercado. O leite mais de R$6,00. Melhor comprar suco de uva.
Eu ainda arrastava o lençol.
Cheguei no caixa, conversei um pouco com a operadora,
digitei a senha e nem olhei o valor. Guardei a nota. Quando arrumei todas as
sacolas nas mãos, tendo o cuidado de deixar mais livre a sacola da doação que
iria fazer na porta do supermercado, lembrei do café.
- Agora já foi.
Entreguei dois pacotes de biscoito waffle de chocolate pra Tayane,
que fica sempre ali com seu filho, pedindo ajuda. Nem sempre eu atendo aos
pedidos dela, e quando o faço, compro coisas mais básicas como cuscuz, arroz,
macarrão...
Hoje eu decidi comprar pro pequeno, que não chega a ter 6
anos. Quando entreguei, ele pediu pra comer e, me afastando, ouvi da mãe:
- esse é tão bom que eu vou vender.
E o menino:
- mas mãe, estou com fome.
E a mãe:
- Grande coisa... eu também.
...
Meu coração já vinha apertado. Já vinha sem bater.
Foi ali que me acabei de vez.
Em casa, tirei o guacamole da geladeira,e joguei no lixo.
Tinha apodrecido.