sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Sobre dor e guacamole

 

Sabe aquela sensação de estar deixando o caixa do supermercado, com várias sacolas nas mãos e lembrar, num rompante, que esqueceu de comprar café?

Você interrompe a caminhada por um segundo e só não leva a mão à testa num gesto mecânico porque está segurando as compras.

- Agora já era.

Hoje acordei na hora, com a sensação de estar atrasada. De ter esquecido alguma coisa. O corpo dolorido das dores do mundo. Fiquei deitada um par de minutos, pensando o que fazer da vida.

No dia anterior, fui ao velório de mais uma mulher assassinada pelo ex-amor... O caixão no meio da capela do cemitério de Santo Amaro gritava. Por justiça. Mais uma. Menos uma.

Anteontem, no prédio vizinho, aconteceu quase a mesma coisa. Um golpe do destino fez o agressor errar os 3 tiros. Ele se matou depois.

Eu chego em casa do cemitério meio encerada. Sem sentir nada. Impermeável. Deito na cama e fico ali atônita. Decido ir caminhar na Jaqueira. Fui no automático. Tinha um saxofonista na porta do parque tocando umas músicas... eu caminhei buscando as melodias, que iam e vinham dependendo da minha localização. Eu não tinha nenhum trocado pra deixar dentro do case dele.

Na volta, vejo na geladeira um abacate maduro, já passando do ponto. Corto as cebolas em pequenos quadradinhos, deixo de molho no limão. Amasso com um garfo a polpa do abacate. Corto cheiro verde bem miúdo. Constato que está faltando tomate... rego a massa de abacate com azeite, sal e bastante pimenta do reino. Junto os demais ingredientes. Olho em volta e vejo a pimenta rosa ali dando sopa... misturo no guacamole para dar um toque de cor na pasta verde degradé.

Cortei umas fatias de pão, arrumei tudo na mesa. E a fome passou antes mesmo que eu sentasse.

Estava exausta.

Uma dor no corpo chamava a alma. Uma covardia por dentro clamava por respeito. A minha garganta dolorida de tanto prender o grito.

Me abandonei na cama. Não eram nem sete da noite. Por via das dúvidas, coloquei o termômetro e a temperatura era 36,2°.

Tudo bem, eu pensei.

Deixei a alma sangrar. Fiquei sentindo a dor da morte destas mulheres que eu nem conheci.

Acordei hoje ressacada.

Faltava ovo, queijo, leite, fruta. Saí relutante da cama, fui ao supermercado. O leite mais de R$6,00. Melhor comprar suco de uva.

Eu ainda arrastava o lençol.

Cheguei no caixa, conversei um pouco com a operadora, digitei a senha e nem olhei o valor. Guardei a nota. Quando arrumei todas as sacolas nas mãos, tendo o cuidado de deixar mais livre a sacola da doação que iria fazer na porta do supermercado, lembrei do café.

- Agora já foi.

Entreguei dois pacotes de biscoito waffle de chocolate pra Tayane, que fica sempre ali com seu filho, pedindo ajuda. Nem sempre eu atendo aos pedidos dela, e quando o faço, compro coisas mais básicas como cuscuz, arroz, macarrão...

Hoje eu decidi comprar pro pequeno, que não chega a ter 6 anos. Quando entreguei, ele pediu pra comer e, me afastando, ouvi da mãe:

- esse é tão bom que eu vou vender.

E o menino:

- mas mãe, estou com fome.

E a mãe:

- Grande coisa... eu também.

...

Meu coração já vinha apertado. Já vinha sem bater.

Foi ali que me acabei de vez.

Em casa, tirei o guacamole da geladeira,e joguei no lixo. 

Tinha apodrecido.

Nenhum comentário:

Horizonte

 Pausar.  Simples e necessário! Tempo restaurador. Arrumar as gavetas da cabeça, acariciar a alma, alentar as dores, afagar os prazeres. Fec...