terça-feira, 24 de julho de 2007
Lembrai-vos
Móveis mofados não contam histórias, mas guardam em seus arranhões, em seus tampos desgastados, em suas estampas desfiguradas, a época em que viveram.
Tenho uma obsessão por móveis antigos. Minha rinite alérgica não é obstáculo.
Gosto do conforto, da sensação de estabilidade.... parece que o passado era assim.
Refuto os guarda-roupas contemporâneos, de aglomerado, vendidos em série, em crediários a perder de vista. Antes ainda do fim do pagamento, caiu uma porta, deslocou uma prateleira.
Pois foi numa destas minhas “revistas” ao brechó que conheci as duas. Não sei seus nomes. Nunca vi seus rostos.
Mas dividimos um momento de intimidade.
Estava na avenida Caxangá, zona oeste do Recife. Entrei em uma das suas lojas de móveis usados, somente pra ver se encontraria alguma coisa interessante. Corri a sessão das cadeiras, entrei nos labirintos dos biombos, me encantei com as penteadeiras.
Foi então que vi no cantinho, esquecida, escondida, uma máquina de costura Singer. O móvel me lembrou o tempo em que a máquina da minha mãe era a trilha sonora das tardes. E ao final, sempre vinha um vestido novo, uma saia reformada... “roupa nova de dono antigo”, ela brincava. Lembro quantas vezes fiquei olhando aqueles pés de ferro, com desenhos rebuscados, enquanto ela finalizava uma bainha pra eu provar.
No brechó, o encontro me foi familiar. Cheguei perto, como quem quer conquistar a confiança de um filhote. De forma atrevida, abri a primeira gaveta. Dedais antigos estavam bem arrumados ao lado de retroses coloridos. Algumas tesouras já gastas também se apertavam no compartimento estreito.
Meus olhos brilharam. Porque entregar em um brechó uma máquina de costura completa, como um apartamento que se aluga mobiliado???
Agora, já meio ofegante, abri a gaveta do outro lado. E lá as encontrei. Estavam impressas em um papel de caderno simples, numa caligrafia em letra azul muito arredondada:
“Minha filha, mande por seu pai a calça azul para eu fazer a bainha. Seu aniversário é quarta-feira e eu não posso comprar presente, mas pelo menos você poderá vestir uma roupinha nova. Você vai trabalhar ou poderá vir almoçar conosco? Envio também o remedinho do meu neto, como você me pediu.
Com amor, sua mãe”.
Do outro lado da folha, estava a resposta, numa letra mais apressada:
“Mãe, segue a calça azul. Obrigada pelo remédio. Ele já está bem melhor. Vou trabalhar no dia do meu aniversário, mas no domingo almoço com vocês. Triste esta vida de morar tão longe, mãe. Beijo você e meus irmãos”.
Pronto. O resto desta história sem nomes nem datas, eu não sei. Também não sei há quanto tempo o pequeno pedaço de papel pautado esperava por um leitor.
Pensei em levar comigo o bilhete, mas não me senti merecedora.
Dobrei-o e novamente coloquei na gavetinha da máquina de costura Singer.
quinta-feira, 12 de julho de 2007
Meu quarto de criança
O meu quarto de criança tinha pouco de infância. Duas caminhas encostadas nas paredes, um móvel baixinho entre elas. No lado oposto, um guarda -roupa legal.
Eu sonhava em fazer cortinas cor-de-rosa, pintar uma parede...
Tinha poucas bonecas, e as guardo até hoje.
Na parede branca, imensa, uma gravura colorida do Snoopy era,acredito,
a única referência ao mundo infantil.
Por muito tempo acreditei que o meu universo era pobre pela falta de elementos materiais que ilustrassem meus espaços.
Depois de já adulta, compreendi que os meus espaços internos eram vastos. Campos imensos.
No silêncio externo e no barulho do meu imaginário, eu olhava aquela imagem contemplativa. Me identificava com ela. Criança, quietinha, caladinha, olhando pro céu infinito e com um emaranhado de pensamentos e sentimentos em formação, como células que se reproduzem aleatoriamente.
Não é que hoje eu encontro esta imagem na Internet, que me remete ao meu quartinho lá na praia de Pau Amarelo?
Eu sonhava em fazer cortinas cor-de-rosa, pintar uma parede...
Tinha poucas bonecas, e as guardo até hoje.
Na parede branca, imensa, uma gravura colorida do Snoopy era,acredito,
a única referência ao mundo infantil.
Por muito tempo acreditei que o meu universo era pobre pela falta de elementos materiais que ilustrassem meus espaços.
Depois de já adulta, compreendi que os meus espaços internos eram vastos. Campos imensos.
No silêncio externo e no barulho do meu imaginário, eu olhava aquela imagem contemplativa. Me identificava com ela. Criança, quietinha, caladinha, olhando pro céu infinito e com um emaranhado de pensamentos e sentimentos em formação, como células que se reproduzem aleatoriamente.
Não é que hoje eu encontro esta imagem na Internet, que me remete ao meu quartinho lá na praia de Pau Amarelo?
terça-feira, 10 de julho de 2007
LAMA
Um corpo que se move pelo tapete de lama do Capibaribe. Vai à lama como um guaiamum que busca o seio da vida, sendo a areia molhada e infectada seu habitat. É acolhido pelo braço da maré baixa. Um corpo menino, olhar de quase-bicho, se esgueirando pelo mangue.
Vejo as imagens brutas pela tela da TV, fria reprodução do mundo lá fora. Dentro da minha ilha, clima gélido, sinto o coração tremular. Play, pause, stop. Como escolher as melhores imagens do momento em que uma criança é escorraçada?
O menino agora tem o corpo todo da mesma cor. Braços e pernas brilham. Uma segunda pele revestiu o corpo de cinza. Suas roupas absorveram a areia molhada. Parece-me um super-herói. Um mutante. Um andróide. Suas vestes cibernéticas, imunes às pedradas que voam das margens, como meteoros carregados de ódio.
Palavras fortes, num idioma excludente, são fabricadas pelos que mantém o domínio da vida na calçada do cine São Luís.
Sigo examinando as imagens. O câmera faz um zoom e consigo finalmente perceber o olhar de pavor. Ele não tem mais de 12 anos. Vira a cabeça para trás e confirma que está fora da linha de fogo. Os lanceiros são homens e mulheres bem vestidos, cabelos bem cortados, bolsas apertadas ao corpo, carteiras resguardadas. São adultos fortes, covardes.
Entre Aurora e o Sol. Os cais são como Terras proibidas. Não há vestígio de aconchego. Resta a enlameada mão/mãe do Capibaribe. O cartão postal às avessas é a rua que tem o nome do nascer do sol.
Vejo as imagens brutas pela tela da TV, fria reprodução do mundo lá fora. Dentro da minha ilha, clima gélido, sinto o coração tremular. Play, pause, stop. Como escolher as melhores imagens do momento em que uma criança é escorraçada?
O menino agora tem o corpo todo da mesma cor. Braços e pernas brilham. Uma segunda pele revestiu o corpo de cinza. Suas roupas absorveram a areia molhada. Parece-me um super-herói. Um mutante. Um andróide. Suas vestes cibernéticas, imunes às pedradas que voam das margens, como meteoros carregados de ódio.
Palavras fortes, num idioma excludente, são fabricadas pelos que mantém o domínio da vida na calçada do cine São Luís.
Sigo examinando as imagens. O câmera faz um zoom e consigo finalmente perceber o olhar de pavor. Ele não tem mais de 12 anos. Vira a cabeça para trás e confirma que está fora da linha de fogo. Os lanceiros são homens e mulheres bem vestidos, cabelos bem cortados, bolsas apertadas ao corpo, carteiras resguardadas. São adultos fortes, covardes.
Entre Aurora e o Sol. Os cais são como Terras proibidas. Não há vestígio de aconchego. Resta a enlameada mão/mãe do Capibaribe. O cartão postal às avessas é a rua que tem o nome do nascer do sol.
Naquela tarde, à hora pouso, uma figura humana, um menino franzino, avorou-se em sair da lama. Uma linda imagem em contra-luz, contraste de cores pardas. Choque social.
O Câmera encontrou um furo. O repórter, talvez conquiste um prêmio com o flagrante.
À beira deste ecossistema, uma fábrica de meninos, que nem sempre viram homens. São assolados tantas vezes pelo mal do extermínio....Nascer já é um privilégio. Vacinados contra o direito universal, sobrevivem aos primeiros anos quase por acaso, talvez por pura teimosia. Marginais do rio-paisagem, não vivem. Teimam.
O Câmera encontrou um furo. O repórter, talvez conquiste um prêmio com o flagrante.
À beira deste ecossistema, uma fábrica de meninos, que nem sempre viram homens. São assolados tantas vezes pelo mal do extermínio....Nascer já é um privilégio. Vacinados contra o direito universal, sobrevivem aos primeiros anos quase por acaso, talvez por pura teimosia. Marginais do rio-paisagem, não vivem. Teimam.
segunda-feira, 9 de julho de 2007
Sinhá Moça
Eu sou do tipo que chora vendo filmes. Do tipo que se emociona com as festinhas da escola dos meninos. Sou ainda mais piegas, acredite.
Mas, espere um pouco. Não sou tão simplória quanto você está pensando.
Às vezes penso de que raça sou mesmo. Da raça humana, gênero feminino.... da espécie que se emociona demais. Aliás, tudo está à flor da pele.
Não sei qual foi o dia em que chorei de alegria pela primeira vez. Só sei que depois desse dia, o riso está cada vez mais raro. Choro de tristeza e de alegria. Choro pela infelicidade e pela felicidade da vida!
No final de tudo, qual é o problema de eu chorar vendo a novela das seis? Sinto-me como minha avó. Nas férias, eu viajava pra casa dela e achava lindo vê-la lendo aqueles romances que sempre tinham nome de mulher: Sabrina, Júlia, Bianca. Ela não me deixava ler. dizia que havia cenas muito fortes pra uma mocinha. Mas no final do dia ela sempre me contava o que acontecia. Podia ser uma jovem triste que conhece um homem em um navio, mas ele é casado. Podia ser a história de uma mullher casada que era muito maltratada pelo esposo e se apaixonava pelo don Juan do lugar. Ele tb se apaixonava por ela. Mas tinha que provar que seria fiel. Ah....Mais tarde, quando estava mais velha, ia no armário da minha avó e lia pedaços dos romances.Era uma bebida rara que eu provava sem pressa, mas com um sabor irresistível de estar transgredindo uma ordem. Se ela sabia, nunca me disse nada. Talvez ela mesma tivesse começado a ler estes romances enquanto a mãe dela tomava banho, ou ia à feira.
Lembrando de tudo isso hoje, eu penso que minha alma de mulher encontrou seu caminho emocional por aí. E neste mundo em que vivo tão masculino, tão imediato, tão cartesiano, ver Sinhá Moça pode representar um prazer enorme.
Mas, espere um pouco. Não sou tão simplória quanto você está pensando.
Às vezes penso de que raça sou mesmo. Da raça humana, gênero feminino.... da espécie que se emociona demais. Aliás, tudo está à flor da pele.
Não sei qual foi o dia em que chorei de alegria pela primeira vez. Só sei que depois desse dia, o riso está cada vez mais raro. Choro de tristeza e de alegria. Choro pela infelicidade e pela felicidade da vida!
No final de tudo, qual é o problema de eu chorar vendo a novela das seis? Sinto-me como minha avó. Nas férias, eu viajava pra casa dela e achava lindo vê-la lendo aqueles romances que sempre tinham nome de mulher: Sabrina, Júlia, Bianca. Ela não me deixava ler. dizia que havia cenas muito fortes pra uma mocinha. Mas no final do dia ela sempre me contava o que acontecia. Podia ser uma jovem triste que conhece um homem em um navio, mas ele é casado. Podia ser a história de uma mullher casada que era muito maltratada pelo esposo e se apaixonava pelo don Juan do lugar. Ele tb se apaixonava por ela. Mas tinha que provar que seria fiel. Ah....Mais tarde, quando estava mais velha, ia no armário da minha avó e lia pedaços dos romances.Era uma bebida rara que eu provava sem pressa, mas com um sabor irresistível de estar transgredindo uma ordem. Se ela sabia, nunca me disse nada. Talvez ela mesma tivesse começado a ler estes romances enquanto a mãe dela tomava banho, ou ia à feira.
Lembrando de tudo isso hoje, eu penso que minha alma de mulher encontrou seu caminho emocional por aí. E neste mundo em que vivo tão masculino, tão imediato, tão cartesiano, ver Sinhá Moça pode representar um prazer enorme.
Voam os pensamentos
Quero meu piano de volta.
perder de vista o real
sem realizar miniaturas de projetos
catalogar meus sentimentos
montar um castelo de mundos.
Entre os dedos eu queria tanto ainda ver passear
as composições alheias
que eu adotei
cuidei
ninei
alimentei
pelos meus ouvidos
entram as minhas notas
como sonhos
bons
horas a fio
doem as costas
reclamam os dedos
foge a mente de mim.
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