terça-feira, 10 de julho de 2007

LAMA


Um corpo que se move pelo tapete de lama do Capibaribe. Vai à lama como um guaiamum que busca o seio da vida, sendo a areia molhada e infectada seu habitat. É acolhido pelo braço da maré baixa. Um corpo menino, olhar de quase-bicho, se esgueirando pelo mangue.
Vejo as imagens brutas pela tela da TV, fria reprodução do mundo lá fora. Dentro da minha ilha, clima gélido, sinto o coração tremular. Play, pause, stop. Como escolher as melhores imagens do momento em que uma criança é escorraçada?
O menino agora tem o corpo todo da mesma cor. Braços e pernas brilham. Uma segunda pele revestiu o corpo de cinza. Suas roupas absorveram a areia molhada. Parece-me um super-herói. Um mutante. Um andróide. Suas vestes cibernéticas, imunes às pedradas que voam das margens, como meteoros carregados de ódio.
Palavras fortes, num idioma excludente, são fabricadas pelos que mantém o domínio da vida na calçada do cine São Luís.
Sigo examinando as imagens. O câmera faz um zoom e consigo finalmente perceber o olhar de pavor. Ele não tem mais de 12 anos. Vira a cabeça para trás e confirma que está fora da linha de fogo. Os lanceiros são homens e mulheres bem vestidos, cabelos bem cortados, bolsas apertadas ao corpo, carteiras resguardadas. São adultos fortes, covardes.
Entre Aurora e o Sol. Os cais são como Terras proibidas. Não há vestígio de aconchego. Resta a enlameada mão/mãe do Capibaribe. O cartão postal às avessas é a rua que tem o nome do nascer do sol.
Naquela tarde, à hora pouso, uma figura humana, um menino franzino, avorou-se em sair da lama. Uma linda imagem em contra-luz, contraste de cores pardas. Choque social.
O Câmera encontrou um furo. O repórter, talvez conquiste um prêmio com o flagrante.
À beira deste ecossistema, uma fábrica de meninos, que nem sempre viram homens. São assolados tantas vezes pelo mal do extermínio....Nascer já é um privilégio. Vacinados contra o direito universal, sobrevivem aos primeiros anos quase por acaso, talvez por pura teimosia. Marginais do rio-paisagem, não vivem. Teimam.

3 comentários:

Dante Accioly disse...

Não sei nem por onde começar. Não sei de pela dureza dessa Lama, se pela sensibilidade da Sinhá Moça ou se pela poesia dos pensamentos que voam. Vou começar assim: eu me identifico demais com tudo o que você escreveu em cada um dos textos. Ainda não consegui criar a casca grossa que nossa profissão exige para ignorar os meninos que bóiam nos rios imundos do país. Ainda não consegui abafar por completo o choro que vez ou outra rasga minha garganta em uma erupções de soluços e lágrimas (embora cada vez mais raras). Ainda não consegui esquecer o sabor doce das notas do violão que enconstei numa gaveta qualquer do meu passado. Por tudo isso, minha amada prima, por me sentir tão próximo e íntimo de tudo o que você escreve, vou voltar aqui diariamente. Para ler os textos que gostaria de ter escrito. Um beijo muito grande. Parabéns pelo blog.

Edson disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Edson disse...

Não Germana... ...você não está aprendendo a ser... ...está nos ensinando a ser!

Ensina-nos a ser ao nos fazer sentir a brutalidade quase lírica da vida...

...como mudar este quadro? ...pelo menos a moldura?...

Provavelmente como você está fazendo:
...sentindo...
...revivendo...

...obrigando-nos a vermo-nos a engolir nossa própria crueldade...

...obrigado linda moça gentil...

Linda pessoa de alma tão linda que nos embarga a voz e nos molha o rosto, em geral tão frívolo e indiferente...

PS- Publicado em 2007... ...já estamos no fim de 2011...

...bem pior em 2011...?

Obrigado querida...

Horizonte

 Pausar.  Simples e necessário! Tempo restaurador. Arrumar as gavetas da cabeça, acariciar a alma, alentar as dores, afagar os prazeres. Fec...