segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Um sopro


No dia em que eu morri, de coração impregnado, chovia muito.

Não fazia frio.
As velas do teatro teimavam em brilhar. Resistiam aos humores da brisa como quem procura por oxigênio para alimentar os pulmões.

A peleja das velas ..... Suas sombras inquietas flamejavam figuras pelas paredes, entre as coxias, que subiam no palco como entidades de outro mundo. Vinham para uma longa festa.
No dia em que morri a chuva também brincava de existir. Os carros à porta do teatro, puxados por cavalos vigorosos e ela vinha como um raio. Dissipava suas gotas em córregos e nos meio-fios. Molhava as casacas pretas, desenhava com vapores abstrações nas janelas. Apressava os passos de salto agulha na pedra sabão e nos degraus de mármore da entrada.
Na sala de espetáculo, não se tomava conhecimento das nuvens fortes, nem sentia- se o vento úmido e denso.
La dentro os perfumes fundiam-se e as vozes eram como murmúrios, correnteza de rio que insinua a chegada.
Nada se decifrava antes de começar o concerto.
Como faço nesta vida, escolhi meu melhor xale. Vesti um modelo que mostrasse bem o meu colo num decote pouco insinuante que emoldurava os ombros. Cabelos displicentes sequer reagiam ao vento.
Acomodei os convidados nos camarotes e sentei-me para apreciar a orquestra talvez na terceira peça. O coração batia forte e suas ondas transbordaram pelos meus olhos. Como acontece nos dias de hoje, o choro era de felicidade.

Os metais contavam histórias. As cordas reagiam com lamentos.
Posso ouvir suas harmonias até hoje.

Foi quando o maestro anunciou. Fiquei em pé para aplaudir. O maestro dedicou para mim a próxima música.
O coração aplaudiu forte demais. Rasgou as veias, arrancou suas paredes.
A minha vista escureceu. Ainda olhei em volta e senti o instante último.
Uma dor forte e definitiva. Como uma vela que teimou e foi vencida pelo vento. Um sopro.
E foi assim que eu morri feliz.

6 comentários:

Mack disse...

A ignorância é irresponsável; a sabedoria não. E agora? Será que dá pra mudar a vida quando a gente lembra o dia da última morte? A revelação é uma bênção que traz responsabilidade ou um mero presente digno dos bons?
Até hoje não descobri o que fazer com minhas lembranças passadas. Se encontrar utilidade para as suas, me conta.

Beijo!

blogpaulocosta disse...

Pois é, amiginha. Por essas e outras, é que devemos viver exclusia e intensamente o hoje. Pois, o ontem se nos deixou algum ensinamento, ainda serve pra alguma coisa. Já o amanhã é um talvez hoje que não vivemos e, talvez, nem estejamos lá. Viva o hoje!

Germana Accioly disse...

queridos mack e paulo, não sei o que levarei desta história, nem mesmo como serei depois disso tudo. mas é verdade, paulinho, que viver intensamente é o que podemos fazer. e quando eu tiver a resposta, vou lá no feita de fé. vc será a primeira a saber!!! beijo!

Antonio Ximenes disse...

Germana.

A luz da vela dança e nos dá vontade de dormir o sono de quem morre feliz.

A amena e frenética dança da luz original da chama nos deleita e adormece os sentidos.

A morte é de brincadeira... é pirraça de poeta, pois quem morre é a chama da vela...

... e a poesia sempre ressurge para acender outra.

Agradeço por ter me visitado e espero te ver mais vezes no meu humilde blogue.

Eu te visitarei mais vezes.

Abração.

Patrícia Cunegundes disse...

Já te disse que tu é boa nesse negócio de escrever? Adoro seus textos.

Germana Accioly disse...

Ximenes, que lindo você chegar por aqui já com esta poesia toda! obrigada pela visita. ´
Patrícia, preciso de uma injeção diária sua pra me sentir o máximo!!!!!
beijo nos dois.

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