Ele era craqueiro. Ou é.
Não sei se anda perambula por estas
ruas.
Usuário de Crack, para os politicamente corretos.
Pouco
importa.
Foi uma conversa rápida. Importa ainda menos.
A verdade é que eu estava tocando Bach e vi que alguém me
observava através da janela aberta. Eu resistia em parar aquele quebra-cabeça
musical. Bach me dá uma embriaguez. Sua música intermitente, suas notas
insistentes e seguidas, seu som exacerbado. Às vezes é rock. Às vezes é hard.
Uma ausência de pausas.
Tocar Bach me deixa com o torpor parecido ao de uma corrida.
Aquele prazer sem fim que o cansaço não vence.
E por isso mesmo, eu relutava em olhar para a janela. Do
outro lado da grade branca com arabescos coloniais, minha platéia era solitária
e muda.
Enfim quando a curiosidade me venceu, vi um homem devastado.
Chorava. Pedia desculpas por estar ali. E me dizia: a vida é muito dura, mas
ouvir esta música acalma qualquer dor.
Lá no fundo do meu lugar burguês eu achei que ele ia pedir uma
moeda pra interar o almoço. Tantos fazem isso. Mas continuei na conversa. Expliquei
que era Bach. No lugar da moeda, ele me pediu Beethoven, mas eu não tinha
nenhuma obra do mestre na manga.
Toquei ainda uns 10 minutos e meu observador continuou ali
de pé. Se despediu.
Continuei minha brincadeira barroca.
Continuei minha brincadeira barroca.
Um tempo depois ele volta. Não resistiu. Chorou feito
criança. Pediu desculpas de novo. Chorei junto.
Dias depois estava eu na padaria. Quando saí na calçada,
quase fui atropelada por um homem completamente drogado, desfigurado. Ele olhou
pra minha bolsa com gana. Eu era a garantia da lombra seguir firme.
Fixei bem nos olhos dele, me pareciam familiares. E foi
aí que ele desmontou. Ele começou a gritar: é a pianista, pianista!!! Olhou pra
mim, bem mais profundo do que eu olhei pra ele e me disse: você tem o dom.
Eu emudeci. Sorri,
mas ao mesmo tempo queria chorar. Aquele homem tinha tanta sensibilidade que
poderia ser meu parceiro musical. Ou um grande maestro. Ou qualquer coisa que
quisesse na vida.
Ele não se demorou muito. Seguiu no seu caminho alheio e
cambaleante.
Desde então, abrir a janela e tocar piano tem outro
significado.
Este é o meu projeto cultural.
2 comentários:
a musica é dom de vida, esse texto é testimonio de vida, a musica nos une sem palavras, o coraçao é mais importante para isso; Continue.F
2 mais projeto de vida, nao é?
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