terça-feira, 21 de junho de 2016

Cheia muda

A cheia tinha levado na minha infância quase a casa toda. 
Morava na Estrada do Encanamento. 
Lembro pouco de 1975. 
A nossa retirada de casa às pressas, 
Um banquinho encostado na parede na janela do apartamento da minha tia, onde eu refugiada subia e via lá embaixo as coisas passeando pelas águas. 
Eu tinha 3 anos. Não entendia a tristeza. 
Admiro a beleza das águas até hoje. 
Na volta pra casa a chuva deixou a marca de um metro e meio.
Do tamanho da minha mãe, eu pensava. 
Lembro das fotos que restaram quarando nos varais, algumas manchadas. 
A gente passando sabão no alpendre imenso pra tirar a lama. 
São cenas perdidas. 
Recife e chuva combinam. 
Eu nunca tinha sentido tristeza de chuva até o dia em que a água veio se espreitando e invadiu o piano.
Invadiu e paralizou. 
Imobilizou.
Nada sobra da alma molhada. 
Quando seca, sem esperança, muda de cor. 
Meu piano mudo.
Eu muda. 
Hoje é noite de chuva e ele voltou.
Vou tocar pra água e seus ventos.
Porque a dor da espera escorreu feito correnteza.
E a música deixou uma marca maior que eu. 
Hoje tenho quase nada a mais que um metro e meio.

Nenhum comentário:

Horizonte

 Pausar.  Simples e necessário! Tempo restaurador. Arrumar as gavetas da cabeça, acariciar a alma, alentar as dores, afagar os prazeres. Fec...