segunda-feira, 18 de junho de 2018

Mulher Maravilha em primeiro lugar





A ideia era fazer um diário de bordo. Um registro de tudo o que vivemos na viagem de mulheres ao Sertão do Pajeú. Queria voltar ao trabalho com um relato fidedigno. Cartesiano. Celulares carregados, procurando o melhor ângulo para fotos e vídeos. Não consegui. O foco estava no sentir. Estava no viver e não no relatar.
Não consegui. Foi uma daquelas viagens em que a gente esquece o telefone, abandona a internet. Estava conectada com outras ondas. Não perdi os momentos, como alguém pode pontuar. Guardei todos. Fiz questão de não enxergar através das lentes.
Viagem longa, estrada reta, são ótimos bálsamos. Para curar agonias da rotina massacrante. Pra pensar melhor sobre a vida e para chegar ao destino de peito aberto, um pouco esvaziado do que nos atropela no dia a dia. Fui.
Às cinco da manhã fiz uns sanduíches e coloquei tudo na bolsinha térmica que comprei na revista da natura. Nunca tinha usado. Fiz uns sandubas de queijo e pesto. Pão baguete. Dividi em quatro. Outras coisitas que vi pela frente, sacudi na bolsinha também. Quando minha carona chegou, na porta de casa, eu já estava a postos. Mochila, travesseiro, toalha, lençol e os lanches. O mais importante na bagagem: uma sede pelo novo. O desejo.
Umas 6h30 saímos em caranava. Éramos quatro carros. Éramos quatro mulheres num Fiat 500 apertadinho....
A BR 232 sempre foi um ótimo abraço. Mata, agreste e sertão. Nesta ordem. Vejo a paisagem se transmutar. Vejo as pessoas se misturarem. Música no carro pra lembrar de momentos e momentos. E confissões. Mesmo que a gente mal se conheça, no carro rolam altas confissões, revelações. O ambiente favorece.
Aumentem o som!
E na cabeça passam vales, colinas, animais na pista. Em cada casinha mora uma realidade. Em cada vila, uma conjunção diferente.
Já quase chegando, fura o pneu do carro. Nada é por acaso, mesmo sendo talvez aleatório. Tinha um buraco no meio do caminho. E nós ficamos por lá. Chegaram os outros carros. Faltou macaco no nosso. Faltou chave de roda e ninguém sabia como tirar, embaixo do carro, o step. Resumo: macaco de um carro e step de outro. Faltam 10 dos mais de 300 quilômetros percorridos.
Afogados da Ingazeira tem 50 mil habitantes. Uma cidade que tem harmonia. Parece uma cidade cenográfica, pra quem entra. Chegamos em dia de feira. Gosto de ver as bancas, de sentir o sabor e ver as cores. Gosto de tomar caldo de cana e perguntar a quanto está o tomate. Uma ótima maneira de conhecer um novo lugar. Chegamos!
Tantas mulheres têm histórias lindas pra contar! De alegrias, conquistas, dores e desventuras. Mas nunca vi histórias tão profundas contadas de forma tão simples. No benvirá, as mulheres aprendem que são seres políticas. E tudo começou hámais de 30 anos, quando um grupo de mulheres grávidas viúvas da seca  (maridos iam tentar a vida no sudeste e não voltavam), reivindicaram o direito de trabalhar nas frentes de emergência. Emergência pra quem? Naquela época somente homens podiam trabalhar. Era cavar açude, fazer cerca, abrir estrada na enxada. Ganhava meio salário mínimo e uma cesta básica por mês. Melhor que nada. O feijão que vinha não cozinhava de jeito nenhum. “Nem com o fogo do inferno”, teria dito o bispo numa rádio na época. E mesmo assim, melhor trabalhar. Foi na ponta da enxada que as mulheres do benvirá se reuniram. E se fortaleceram na luta pelos direitos.
Começaram a fazer aula de bordado, de corte e costura, de artesanato, tudo pra unir as mulheres e discutir política. Na terra seca de afogados, a semente foi plantada e floresceu.
A primeira atividade com as mulheres, depois de consertar o pneu do carro, foi uma festa junina. Forró, coco, canjica, milho e muito papo. Lourdinha me mostra na tela do celular a foto da nora, grávida de Lia e vestida lindamente numa roupa de quadrilha. Ficou no Recife. Vi outra foto de Lourdinha grávida com as mulheres do benvirá, uns 30 anos antes. O tempo não para, o ciclo se refaz.
E a gente sambou coco com as quilombolas de Carnaíba. A gente do litoral dá umbigada, se vira de um lado pro outro. Elas danças num remexido miudinho, parecendo um toré. Mas estávamos na mesma roda. A noite varou. Valeu demais. Teve promoção de cerveja, teve sorteio de brinde, teve até leilão de batida. Eita sertão!
Companheira me ajude, que eu não posso andar só. Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor.
Dia seguinte era de lida. Feira, batucada, o inesperado e o inusitado.
A cena me tomou. Mulheres no sertão do Pajeú batucando, falando em política. Vou passar muito tempo ainda depurando tudo o que vivi. Os olhares, a vontade de mudança de tantas! Uma vendedora da banca de farinha foi das que mais me encantou. Ela me disse: Ta passando da hora. Ta mesmo.
Muita luta, muita lida. Se cuida, se cuida. Se cuida seu machista. A américa latina vai ser toda feminista.
Conhecer as mulheres do Benvira é privilégio.
Você precisa visitar o Pajeú. O Sertão. Você precisa conhecer a fibra das pessoas da região. As mulheres feitas desta matéria.
A firmeza doce de Lourdinha.
O abraço de Fátima.
O sorriso de Uilma.
A serenidade de Cida.
A arte e a poesia de Odília.
Você precisa.
São mulheres do Benvirá.
Bem virá.
O futuro do bem.
E se você não for uma mulher do benvirá, não se avexe.
Quem ali comunga, bebe e partilha a mesa, sai de um jeito diferente.
Chegue cá, mulher. Nenhuma a menos. Somos todas Mulheres Maravilha! Todas unidas numa luta.
A estrada na volta parecia mais plácida. O abraço com a BR 232 me veio com paz. O caminho de volta nunca é igual ao de ida. Pra falar a verdade, acho que nunca voltamos para o mesmo lugar. Não importa se o endereço permanece. Não importa o diário de bordo. Não sou a mesma. Que bom. Tem algo de maravilha em mim, no mundo do benvirá.

Um comentário:

Unknown disse...

Emocionante esse relato.com nossas historias de vida e de suoeraçao...barebens a tds

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