segunda-feira, 18 de maio de 2020

Café com pão


Começo meu texto pedindo desculpas. Por ser cada vez mais escriba da vida privada. Por utilizar minhas figuras de linguagem a partir das experiências do cotidiano. Pode parecer a você que quero banalizar o sentimento do mundo, quando faço analogias com o que se conversa na mesa da cozinha...Minha tradução da quarentena.
O borbulho do café subindo na cafeteira italiana  já gasta, antiga e cheia de histórias é o prólogo, quase sempre. A gente senta e divide. Cada vez a cafeteira fica menor... é esta a impressão. Repetimos a operação e enchemos mais uma vez as xícaras. Não são confissões. Não são confessionários. Às vezes é silêncio. Às vezes, cada um pega sua xícara e segue para o seu canto, seu mundo. O aroma perfuma a casa e a gente se irmana nestas ondas.
Há sempre a possibilidade de um café.
O confinamento nos traz um olhar pra dentro, mas tem a dor do mundo todinho morando na sala de estar. E conversamos sobre o que aparece na TV, sobre o mundo talvez melhor um dia. Sobre política. Falamos sobre o gato, o cachorro. Sobre a chuva e o calor. Sobre You tube, sobre o passado.... sobre acalmar a mente e esperar.
Olho pra um dos filhos. O mais velho. Já homem, na comissão de frente da pandemia. Mas vejo nos seus olhos o mesmo tom de vinte anos atrás. Lembrei hoje de quando ele chegava da escola e por ventura eu tinha mudado uma mesa de lugar. Parecia que não era mais a casa dele. Ele reclamava, ameaçava não almoçar. “Quero minha casa de volta”, ele bradava. Eu achava engraçado aquele menino de olhinhos de jaboticaba e cabelo de milho e frases tão firmes. Ele cruzava os braços e sentava amuado num canto da sala. Deve ser a lua em capricórnio, eu divagava. Hoje a expressão é a mesma. Não é mais a sala de casa o cenário. Ele está na UTI Covid. Num posto de saúde na Zona Norte. Sim, filho... tudo está fora do lugar. Desta vez é você quem precisa ajudar a colocar tudo em ordem.
O mais novo, olhos grandes e cabeça no mundo. Lembro que ainda recém nascido dormia melhor quando estava comigo. Nasceu no semestre da minha formatura na UFPE. Fiz a
maioria dos trabalhos finais com ele junto. Editei vídeo, escrevi relatório como uma mãe canguru. Ele está confinado cem por cento comigo. Conversas, xícaras de chá, lavamos louça e cuidamos do lixo. De quando em vez deitamos no tapete da sala e assistimos a programas policiais. Preparamos o ambiente. Almoçamos no chão mesmo. Varamos às vezes a madrugada. Engraçado como a gente tem a essência constante. Quando ele tinha dois anos, fiz uma cirurgia. Ele colocou um monte de brinquedos no meu quarto e ficou ali o tempo da recuperação. Dias e dias. Ontem me deu uma dor nas costas – do peso do tempo que carregamos – e ele repetiu o gesto. Ficou junto, dormiu na rede do quarto. Tô aqui, mãe.
Eu, neste novo ordenamento, me encontro mais aberta para percebê-los. E soltá-los. Perceber os movimentos. Para onde apontam as vidas adultas que nascem em cada um.
Já são dois meses. O compasso deste tempo infinito. O compasso da vida ritmada. A viagem pra dentro.
As lições de privilégio e desamparo na vida afora. Noves fora... estamos em barcos diferentes nas mesmas águas.
Na mesa da sala aprendo a fazer pão. Minha energia toda na sova da massa. O tempo da fermentação. O ponto certo do forno. Um alimento sagrado que serve de repertório de amor. A mente conectada com esta tarefa ancestral.
Esperamos o tempo de abraçar e voltar a sentir o vento no rosto. Enquanto a massa descansa, passo mais um café

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Horizonte

 Pausar.  Simples e necessário! Tempo restaurador. Arrumar as gavetas da cabeça, acariciar a alma, alentar as dores, afagar os prazeres. Fec...