Clarice e
João,
Escrevo esta
carta num agosto esquisito. Um agosto de poucos ventos. Um agosto de poucos
sonhos. Os ventos nas pontes não encontram as saias, ou os chapéus para
brincar. Os ventos nas pontes passam sem a levada dos barcos que buscam a beira
do mar.
Escrevo da
sala da minha casa, o mesmo vento entra remexendo nas plantas e no meu cabelo.
O vento mais fresco e instável de agosto no Recife. O Recife mais instável no
agosto pandêmico.
Esta cidade
que vocês descreveram, moeram e expuseram as belezas e as entranhas. A mesma
cidade da tua infância, do Bonde que levava pra praia em Olinda, Clarice. A
mesma cidade do teu cão sem plumas, João. A mesma Veneza brasileira, a mesma capital
da geografia da fome.
Somos
moradores da mesma cidade em tempos desencontrados. Andamos pelas mesmas
pedras. Passeamos pelas praças de sempre. Costuramos pelo centro, nas ruas
tontas e tortas da cidade orgânica. Peço até desculpas por tanta intimidade,
chamar vocês dois pelo primeiro nome... assim como se fôssemos vizinhos.
Nunca tomamos
café na varanda, ou nos esbarramos na padaria da esquina. Mas levo no meu
coração a nossa cidade como um relicário. Algumas das memórias, construí com as
linhas que li assinadas por vocês.
Me pergunto se
vocês amariam o Recife de hoje. Seus encantos decadentes, seus arranha-céus emergentes,
empatando o sol, espremendo a lua. Boa viagem com sombra na areia, o centro
histórico resiliente, os espaços públicos de ninguém.
Já te visitei
na sua casa, Clarice. Persegui seus passos pela Boa Vista velha, os postes
iluminando à meia luz os passeios vespertinos. Já sentei do teu lado na Praça
Maciel Pinheiro.
Sim, na frente
da casa que você morou hoje tem uma escultura tua. Linda, por sinal. Você na
sua serenidade lendo em frente ao chafariz. Com o olhar poético, é lindo de
ver. Triste é ver com os olhos do real. O sobrado que você morou tem uma placa
já bem desgastada contando a tua história brevemente. Quase não conseguimos
mais ler. O sobrado? Lembra que ele praticamente inaugura a Rua do Aragão? Pois
bem. O sobrado é quase uma ruína. Eu fecho os olhos e tento imaginar todo
aquele casario décadas atrás. A comunidade judaica chegando, transformando. Os
pianos ressoando das casas, num leva e traz vivo. A rua da imperatriz se
entregando ao Rio no final, os passeios e matinés.
Rio, aliás,
cantado por João Cabral.
João, te
conheci em Toritama. Aquela cidade Agreste pra lá de Caruaru. Fiz a travessia com
teu livro nas mãos. Severinos com nome de pia. Todos filhos da mesma miséria. Não
sou mais ou menos pernambucana por conhecer onde passa o nosso Rio. O batismo
se dá nas venturas e desventuras dos que ali manejam a vida.
Você talvez
não acredite, de tão surreal, mas houve algumas vezes em que o Capibaribe, lá
na antiga cidade de Torre, foi tingido de blue jeans. As lavouras
viraram lavanderias, João. As lavradoras são costureiras de facções. A mesma
vida Severina. O rio castigado seria o personagem principal do teu poema.
Agonizava árido de peixes, vazio de árvores.
Contigo, João,
prefiro bater papo ali na Aurora. Do lado de cá da Rua do Sol, tendo o Teatro
de Santa Isabel de fundo. Você, plácido, sentado naquele passeio. Outro dia
acordei e saí correndo pra lá, pra saber como você estava. A notícia triste era
que tinham riscado a tua imagem. E você olhando pro Capibaribe. O mesmo Capibaribe
que acolhe os meninos chiés, os homens guaiamuns, as mulheres aratus.
Aliás, João,
os Severinos e Severinas moram, muitos, por aqui. São
corpos que se movem pelo tapete de lama do Capibaribe. Vão à lama em busca o
seio da vida, sendo a areia molhada e infectada seu habitat. São acolhidos pelo
braço da maré baixa. Outro dia, fui testemunha de uma cena na frente do cine
são luiz que poderia estar em um de seus poemas.
Era
um corpo menino, olhar de quase-bicho, se esgueirando pelo mangue. Vi as
imagens brutas pela tela da TV, fria reprodução do mundo lá fora. Dentro da
minha ilha, clima gélido, senti o coração tremular. Play, pause, stop. Como
escolher as melhores imagens do momento em que uma criança é escorraçada? O
menino agora tem o corpo todo da mesma cor. Braços e pernas brilham. Uma
segunda pele revestia o corpo de cinza. Suas roupas absorviam a areia molhada.
Parecia um super-herói. Um mutante. Um andróide. Suas vestes cibernéticas,
imunes às pedradas que voavam das margens, como meteoros carregados de ódio.
Palavras fortes, num idioma excludente. Eu, no meu ofício jornalístico, segui
examinando as imagens. O câmera fez um zoom e consegui finalmente perceber o
olhar de pavor. Ele não tinha mais de 12 anos. Virava a cabeça para trás e
confirmava que estava fora da linha de fogo. Ou de pedras. Os lanceiros eram
homens e mulheres bem vestidos, cabelos bem cortados, bolsas apertadas ao
corpo, carteiras resguardadas. Adultos fortes, covardes.
Entre
Aurora e o Sol.
Os
cais são, desde sempre, terras proibidas. Não há vestígio de aconchego. Resta a
enlameada mão/mãe do Capibaribe. O cartão postal às avessas é a rua que tem o
nome do nascer do sol.
Naquela tarde, à hora pouso, uma figura humana, um menino
franzino, avorou-se em sair da lama. Uma linda imagem em contra-luz, contraste
de cores pardas. Choque social. O câmera encontrou um furo. O repórter, talvez
conquiste um prêmio com o flagrante. À beira deste ecossistema, uma fábrica de meninos,
que nem sempre viram homens. São assolados tantas vezes pelo mal do
extermínio....Nascer já é um privilégio. Vacinados contra o direito universal,
sobrevivem aos primeiros anos quase por acaso, talvez por pura teimosia.
Marginais do rio-paisagem, não vivem. Teimam.
E nada do que escrevo é novo, João. Nada do que sinto é inédito,
Clarice. Construo diálogos e envio cartas através do tempo. Olho as pistas da
cidade, encaro suas feridas abertas e sua poesia marginal. Uma muralha que se
constrói a cada dia.
Esta carta, garrafa jogada ao mar para o passado, rezo através das
décadas, quiçá chegará até vocês. O não-tempo mora em algum endereço.
Vou qualquer domingo desse te convidar pra ouvir Chopin aqui em
casa, Clarice. Umas valsas, talvez um vinho... E te contarei quando eu, mocinha
e moradora de Olinda, vinha para o Recife comprar tecido e aviamentos para meus
vestidos.
Ou ainda antes, no sobrado da estrada do encanamento, quando a
água viva do Capibaribe decidia nos visitar. Entrava sem bater. Subia mais de
um metro. A gente salvava o que podia... Havia poesia nas cheias. Há poesia nos
desalentos.
Encaminho neste envelope imaginário, um resgate do Recife. Aquele meio
lírico, meio cruel. Aquele meio menino e meio caranguejo.
Meio lama, meio mar. Assim, como a vida. Assim como a poesia e a
prosa.
Com amor e saudade, Germana.
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