quinta-feira, 15 de outubro de 2020

carta a Clarice e João

Clarice e João,

 

Escrevo esta carta num agosto esquisito. Um agosto de poucos ventos. Um agosto de poucos sonhos. Os ventos nas pontes não encontram as saias, ou os chapéus para brincar. Os ventos nas pontes passam sem a levada dos barcos que buscam a beira do mar.

Escrevo da sala da minha casa, o mesmo vento entra remexendo nas plantas e no meu cabelo. O vento mais fresco e instável de agosto no Recife. O Recife mais instável no agosto pandêmico.

Esta cidade que vocês descreveram, moeram e expuseram as belezas e as entranhas. A mesma cidade da tua infância, do Bonde que levava pra praia em Olinda, Clarice. A mesma cidade do teu cão sem plumas, João. A mesma Veneza brasileira, a mesma capital da geografia da fome.

Somos moradores da mesma cidade em tempos desencontrados. Andamos pelas mesmas pedras. Passeamos pelas praças de sempre. Costuramos pelo centro, nas ruas tontas e tortas da cidade orgânica. Peço até desculpas por tanta intimidade, chamar vocês dois pelo primeiro nome... assim como se fôssemos vizinhos.

Nunca tomamos café na varanda, ou nos esbarramos na padaria da esquina. Mas levo no meu coração a nossa cidade como um relicário. Algumas das memórias, construí com as linhas que li assinadas por vocês.

Me pergunto se vocês amariam o Recife de hoje. Seus encantos decadentes, seus arranha-céus emergentes, empatando o sol, espremendo a lua. Boa viagem com sombra na areia, o centro histórico resiliente, os espaços públicos de ninguém.

Já te visitei na sua casa, Clarice. Persegui seus passos pela Boa Vista velha, os postes iluminando à meia luz os passeios vespertinos. Já sentei do teu lado na Praça Maciel Pinheiro.

Sim, na frente da casa que você morou hoje tem uma escultura tua. Linda, por sinal. Você na sua serenidade lendo em frente ao chafariz. Com o olhar poético, é lindo de ver. Triste é ver com os olhos do real. O sobrado que você morou tem uma placa já bem desgastada contando a tua história brevemente. Quase não conseguimos mais ler. O sobrado? Lembra que ele praticamente inaugura a Rua do Aragão? Pois bem. O sobrado é quase uma ruína. Eu fecho os olhos e tento imaginar todo aquele casario décadas atrás. A comunidade judaica chegando, transformando. Os pianos ressoando das casas, num leva e traz vivo. A rua da imperatriz se entregando ao Rio no final, os passeios e matinés.

Rio, aliás, cantado por João Cabral.

João, te conheci em Toritama. Aquela cidade Agreste pra lá de Caruaru. Fiz a travessia com teu livro nas mãos. Severinos com nome de pia. Todos filhos da mesma miséria. Não sou mais ou menos pernambucana por conhecer onde passa o nosso Rio. O batismo se dá nas venturas e desventuras dos que ali manejam a vida.

Você talvez não acredite, de tão surreal, mas houve algumas vezes em que o Capibaribe, lá na antiga cidade de Torre, foi tingido de blue jeans. As lavouras viraram lavanderias, João. As lavradoras são costureiras de facções. A mesma vida Severina. O rio castigado seria o personagem principal do teu poema. Agonizava árido de peixes, vazio de árvores.

Contigo, João, prefiro bater papo ali na Aurora. Do lado de cá da Rua do Sol, tendo o Teatro de Santa Isabel de fundo. Você, plácido, sentado naquele passeio. Outro dia acordei e saí correndo pra lá, pra saber como você estava. A notícia triste era que tinham riscado a tua imagem. E você olhando pro Capibaribe. O mesmo Capibaribe que acolhe os meninos chiés, os homens guaiamuns, as mulheres aratus.

Aliás, João, os Severinos e Severinas moram, muitos, por aqui. São corpos que se movem pelo tapete de lama do Capibaribe. Vão à lama em busca o seio da vida, sendo a areia molhada e infectada seu habitat. São acolhidos pelo braço da maré baixa. Outro dia, fui testemunha de uma cena na frente do cine são luiz que poderia estar em um de seus poemas.

Era um corpo menino, olhar de quase-bicho, se esgueirando pelo mangue. Vi as imagens brutas pela tela da TV, fria reprodução do mundo lá fora. Dentro da minha ilha, clima gélido, senti o coração tremular. Play, pause, stop. Como escolher as melhores imagens do momento em que uma criança é escorraçada? O menino agora tem o corpo todo da mesma cor. Braços e pernas brilham. Uma segunda pele revestia o corpo de cinza. Suas roupas absorviam a areia molhada. Parecia um super-herói. Um mutante. Um andróide. Suas vestes cibernéticas, imunes às pedradas que voavam das margens, como meteoros carregados de ódio. Palavras fortes, num idioma excludente. Eu, no meu ofício jornalístico, segui examinando as imagens. O câmera fez um zoom e consegui finalmente perceber o olhar de pavor. Ele não tinha mais de 12 anos. Virava a cabeça para trás e confirmava que estava fora da linha de fogo. Ou de pedras. Os lanceiros eram homens e mulheres bem vestidos, cabelos bem cortados, bolsas apertadas ao corpo, carteiras resguardadas. Adultos fortes, covardes.

Entre Aurora e o Sol.

Os cais são, desde sempre, terras proibidas. Não há vestígio de aconchego. Resta a enlameada mão/mãe do Capibaribe. O cartão postal às avessas é a rua que tem o nome do nascer do sol.

Naquela tarde, à hora pouso, uma figura humana, um menino franzino, avorou-se em sair da lama. Uma linda imagem em contra-luz, contraste de cores pardas. Choque social. O câmera encontrou um furo. O repórter, talvez conquiste um prêmio com o flagrante. À beira deste ecossistema, uma fábrica de meninos, que nem sempre viram homens. São assolados tantas vezes pelo mal do extermínio....Nascer já é um privilégio. Vacinados contra o direito universal, sobrevivem aos primeiros anos quase por acaso, talvez por pura teimosia. Marginais do rio-paisagem, não vivem. Teimam.

 

E nada do que escrevo é novo, João. Nada do que sinto é inédito, Clarice. Construo diálogos e envio cartas através do tempo. Olho as pistas da cidade, encaro suas feridas abertas e sua poesia marginal. Uma muralha que se constrói a cada dia.

 

Esta carta, garrafa jogada ao mar para o passado, rezo através das décadas, quiçá chegará até vocês. O não-tempo mora em algum endereço.

 

Vou qualquer domingo desse te convidar pra ouvir Chopin aqui em casa, Clarice. Umas valsas, talvez um vinho... E te contarei quando eu, mocinha e moradora de Olinda, vinha para o Recife comprar tecido e aviamentos para meus vestidos.

Ou ainda antes, no sobrado da estrada do encanamento, quando a água viva do Capibaribe decidia nos visitar. Entrava sem bater. Subia mais de um metro. A gente salvava o que podia... Havia poesia nas cheias. Há poesia nos desalentos.

 

Encaminho neste envelope imaginário, um resgate do Recife. Aquele meio lírico, meio cruel. Aquele meio menino e meio caranguejo.

 

Meio lama, meio mar. Assim, como a vida. Assim como a poesia e a prosa.

 

 

Com amor e saudade, Germana.

 

 


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