segunda-feira, 26 de março de 2012

à covardia. e ao amor.



Esta é a história da covardia e do amor.
Ou da coragem de seguir admitindo que não ama. É preciso ter força pra isso. Todo dia se olhar no espelho e dizer: não amo mais. E ao mesmo tempo impor-se a sansão à felicidade.
Sair daquele banho e dar bom dia, beijo de café, e rir, e acreditar que a reforma no banheiro, ou a viagem internacional, ou qualquer outro pretexto possa um dia trazer um gostinho de amor.
Todos acreditam na felicidade do casal padrão. Eles vestiam o personagem. Ele é que de vez em quando pensava em tirar a fantasia. Por isso, foi procurar ajuda.
Ia duas vezes por semana à terapia. No começo lhe parecia outro gesto de pura covardia. Pagar pra dizer tudo o que não tinha coragem de fazer na vida inteira. E lá se iam 20 anos entre namoro, brigas, noivado, rompimentos, casamento, desencanto, nascimento da filha...
40 minutos pra desaguar. Falava e se ouvia. E quanto mais fala, mais escutava as palavras com propriedade. Até que um dia a palavra mandava nele. Saía sozinha. Não podia mais evitar.
Em casa, no banho matinal, passou a trancar a porta. Não se olhava mais no espelho. Um dia quase vomitou todas as palavras do consultório junto com a granola e o iogurte de aveia.
Travou a boca. Saiu com pressa. Ela não entendeu nada.
Aliás, ela era uma ostra. Nunca tinha entendido nada mesmo. Ele achava, no começo, muito justo. Porque lá no fundo sempre se culpou por não amá-la como amou a outra, a que veio antes dela, o amor proibido. Por isso, ao em vez de amar, se desdobrava.
Cuidava dela pra substituir seus devaneios que nunca passavam. Nunca. Nem mesmo ele fechando a cara nas festas de família, nem mesmo quando a outra casou, nem mesmo quando ela decidiu ir morar longe. Ele agredia o passado, mas não se desfazia dele. Desmatava as florestas da sua história e não arrancava as raízes.
Então, era a lei da compensação. No casamento ele tratava bem, fazia supermercado, era gentil, gentil até o último dos limites. Aliás, ele não tinha limites.
E ela aqueles anos todos nunca tinha perdoado o fato de ele ter tido um amor maior. Então, foram levado aquele equilíbrio denso, pesado. Ele a levava no trabalho, buscava, fazia feira, ia à lavandeira, ficava nas filas dos bancos, acordava de noite pra trocar a menina.
Ela dormia mais, tinha uma dor nas costas crônica, não gostava de música alta, pedia pra ele amarrar o sapato dela “por favor, meu amor”.
Perdão só vem com penitência.
Por isso, naquele dia aproveitou os 40 minutos pra desistir. bateu a porta atrás de si e abandonou a ideia de qualquer mudança de vida. Entrou naquele consultório tentando diminuir a dor, mas ela só aumentava, como uma bola de encher. Se explodisse, onde iam residir os medos, as dores, os impulsos, os desesperos?
 Entrou em casa e fez um super jantar. Mesa com velas, taças de cristal. Mimou a mulher, abriu um vinho.
E quando ela perguntou o que comemoravam, ele respondeu: um brinde ao amor e pensou ao mesmo tempo: “e à covardia”.
FIM

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Horizonte

 Pausar.  Simples e necessário! Tempo restaurador. Arrumar as gavetas da cabeça, acariciar a alma, alentar as dores, afagar os prazeres. Fec...