terça-feira, 12 de setembro de 2017

roda de mulheres

Eu tenho em mim minha avó, minha mãe, minhas muitas mulheres.
Habitam, coexistem e se misturam num fluxo de vida sem margens.
Trago em mim estas ancestralidades. Os filhos gestados, os partos de luz, as vidas interrompidas, os sonhos nunca ousados.
Há tempo elas hibernavam. Talvez nunca tivessem, ao longo de tantas gerações, vivido um verão. Imagino primaveras ocultas que as faziam ultrapassar outonos severos. Tantas noites tão longas sem usufruir do sereno...
Ouso viver as vidas que nunca foram minhas, reinventar o caminho sem querer reescrever história. O ser que me cabe é imenso! Mora em mim dona Lindalva, mulher da Guaiuba, interior brabo do Ceará. Filha de coronel, tinha suas roupas compradas em Paris... mas nunca saía de casa. Nunca entrou numa cozinha. Nunca aprendeu a cavalgar. Criou 11 filhos.
Reside no mesmo lugar Dona Francisquinha. Cozinheira de fazer gemer, mestra na arte do crochê, amante do rádio e do futebol. Ela, de Sobral. Teve 9 filhos, criou 8.
As duas, minha avós. Nascidas no início do século XX. Conhecendo a mim mesma, talvez eu entenda hoje a tristeza ou a angústia, a inquieta sensação de não fazer parte de nenhum lugar que havia nas suas almas. Minha avó Lindalva era triste. Minha avó Fransquinha, amarga. Duas mulheres fortes que, tal qual pés de gueixas, precisaram caber em vidas muito menores. Não cabia. Deformava.
Elas, tatuadas em mim, na minha alma inquieta de artista, na minha ânima impetuosa, no meu caráter intempestivo, me impulsionam para a luta. A cura de tantas e tantas e tantas luas de silêncio pode estar aqui. Quando a vida inspira mais vida, reclama liberdade, grita por um mundo outro, possível.
Imagino que se elas tivessem sentado um dia numa roda de mulheres, ouvido e falado, trocado mais olhares, abraços, a missão desta geração seria menor. Eram mulheres de respeito, criadas na solidão feminina da esposa e mãe compulsória.
Tantos invernos sobre vidas longas de nãos!
A minha aurora veio lenta, preguiçosa, quase relutante. Um alvorecer incerto, tardio, relutando sair da noite. Mas não se pode ignorar o sol no olho, cegando a gente de tanta luz. E cá estou eu. Sentada numa roda de mulheres poderosas, inspiradoras e tão fortes! Cheguei pisando leve, sentei na pontinha da cadeira, com medo de não pertencer a este lugar. Minha voz nem tinha legitimidade pra mim. O discurso era tão distante, mas tocava no meu peito congestionado de dor.
E a dor foi dando espaço à certeza. E metabolizando-se em força. Hoje tenho assento na minha convicção. Pelas minhas avós, pelas minhas tias, pela minha mãe, por minhas irmãs, minhas sobrinhas e pelas gerações que virão.

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