domingo, 26 de maio de 2019

Olhos de pimenta

Planta uma semente. Na sorte, ela vai brotar. Na sorte, ela floresce e frutifica. O que você fez além de regar, velar aquele surgir de vida?
Quase nada... regulou o sol, cuidou de uma praga que se avizinhava... mas a força da vida mora na semente, na planta, na flor, no fruto, na nova semente que se apresenta.
Faz um tempo, plantei uma semente de pimenta. Revolvi a terra, semeei, cuidei da luz, da sombra, comemorei cada nova folhinha. Ta linda. Mas não é minha. É dela mesma. Vou, com sorte, me deliciar com seu fruto. Vou, com sorte, temperar a vida com ela.
Suas folhas brilham de manhã, verde claro quase neon conversando com o sol. Verde conversando com meus olhos. Verde que espera, no seu tempo, chegar o tempo da colheita.
Suas flores mínimas, branquinhas com miolo amarelo tão singelo, guardam seu segredo:  de herança, fruto forte, vibrante, ardente.
Amo a pimenteira. Talvez meu amor resida em mim mesma.
Amo a pimenteira pelo que tem de semelhança com a minha vida. Meus frutos, minhas flores, minhas sementes... minhas folhas queimadas pelo sol, as novas brotando.
A cada nova safra, uma força a mais, um impulso de vida mais forte, um recomeçar. Semente que brota em pedra.
Somos pareias, eu e a pimenteira que semeei. Comparsas na viagem da vida, neste recomeçar absurdo. Nesta busca pelo tempo que se esvai a cada piscar.
Já dizia Clarice: “Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa qualquer entendimento.”

segunda-feira, 20 de maio de 2019

pretexto


Meu pretexto barato
Óleo que não se mistura no caldo da alma,
Paisagem na parede,
Janela pro nada.
Meu pretexto miúdo
Evoca todo o sentido,
Reside na esquina do ser,
Encerra frases sem nada dizer.
Meu pretexto vazio
É simulacro de vida,
Fuga do vácuo,
Alegoria em dias de momo,
Maquete de mim mesma.
Tudo pretexto.


domingo, 5 de maio de 2019

Bendita raiva


Eu tenho exercitado sentir raiva.
Este sentimento primitivo, primário, legítimo e culpado.
Não sublimo. Não me escondo. É raiva.
Do ônibus que atrasou, do salário que não chega no final do mês, das ruas sujas do Recife.
Eu sinto raiva de mim também.
Porque passei tanto tempo jogando pra baixo do tapete o que doía. E entupi tantas veias com a sujeira. Feito quem acumula louça de uma semana na pia e ao final não tem sequer uma xícara pro café matinal.
Como quem deixa pilhas de roupa suja...
Ou como quem não olha de frente pra dor que sente.
A raiva, ao contrário, tem sido um ácido muriático, abre caminhos, desentope. Pode ter aquele efeito de devastação. Pode demais. Mas limpa. Deixa leve.
Não quero mais propaganda de margarina.
Nem parecer personagem de comercial de sabão em pó.
Eu tenho raiva de você. E não peço desculpas. Nem as aceito.
Você, que no meu momento frágil, chegou e abraçou minha solidão.
Você, que naquela hora de não-amor que eu vivia, me encheu de volúpia.
Você, que em público me beija e no privado me ignora.
Você, que se mobiliza sobremaneira pelo próprio desejo e em nada com o que eu sinto.
Eu tenho, que bom, sentido muita raiva de você.
Eu tenho, que maravilha, me enfurecido com este amor que você brada aos quatro ventos, lirismo poético inútil, encastelado na sua loucura. 
Das fotos felizes publicadas aos lotes...
Tenho raiva da sua incoerência.
Tenho raiva da sua covardia.
E do seu egoísmo.
Bendita raiva. Estou viva.

Horizonte

 Pausar.  Simples e necessário! Tempo restaurador. Arrumar as gavetas da cabeça, acariciar a alma, alentar as dores, afagar os prazeres. Fec...