quarta-feira, 28 de julho de 2021

conto de fadas

 

Era madrugada e a menina acordava num salto.

Um facho de luz vinha da sala.

Deslizava entre os lençóis, seus pés pequeninos tocavam o chão. O corredor era imenso! Ela descia os dois degraus e estava na sala de jantar.

- Não consigo dormir...

A luz acesa sobre a mesa iluminava muitos papeis. Mapas gigantes para os seus olhos tão pequenos.

Lá fora, o silêncio era cortado pelos grilos, o coaxar de uma ou outra rã... ou seria sapo...

Ela esfregava os olhos cansados.

- Já é de madrugada?

Nem bem conseguia, em pé, alcançar o tampo da mesa. Espichava-se na ponta de bailarina.

Aquelas noites de trabalho do pai eram especiais. Ele cansado do dia, esticando o expediente.

- Me conta uma história?

Segurava na sua mão, subia os dois degraus, atravessava o corredor imenso... tudo ia ficando penumbra.

Deitava a menina na cama, embrulhava com o lençol.

- Você é o meu presente.

Começava uma fábula qualquer, construída na hora. Eram histórias de agricultores, de cabrinhas professoras, de pessoas que se alfabetizavam.

A voz do pai, vencida pelo cansaço, ia ficando lenta.

A menina cutucava.

-Acabou?

Ele voltava à narrativa.

- Pai, conta uma de princesa?

Ele já não ouvia. Ressonava.

A menina se aninhava, enrolada no lençol.

Quiçá, sonhava com princesas, que libertariam agricultores... ou com príncipes professores de animais que ainda não sabiam ler. Ou com fadas madrinhas que, com suas varinhas, fariam a revolução.

Esta lembrança longínqua, de noites e noites e noites de conversa sussurrando pra não acordar a casa, desperta de um longo sono. Hoje a menina escreve suas próprias histórias. Revira memórias, dá nome aos sentimentos e embrulha tudo pra presente. 

Graças ao pai.

amor roubado

 

A saudade me paralisou

Engasgou a infância

Meus dez anos tomados de assalto


Perdi tanto:

as flores no quintal

as histórias antes de dormir


Um amor roubado


Os finais de semana programados

e a nossa tristeza quinzenal

eram traduzidos

nas paredes grossas

nas janelas pequenas

no pão torrado demais


Passei a acordar de madrugada

a  procurar seus vestígios

passei a querer esquecer 

mas era a dor que não passava


Lembro do cheiro

dos móveis comprados de segunda mão

na Rua da Conceição:

a mesa redonda de jacarandá

as cadeiras de madeira com encosto e assento de palha trançada

os lençóis estampados com babado azul

o jogo de damas

os brinquedinhos de chumbo


Lembro dos olhos dele

nos tempos mais turvos

quando me visitava na escola


Queria esquecer


Cresci silenciando

emudeci amadurecendo

a saudade que sentia

dos sanduíches de bolacha cream cracker com geleia de mocotó

de ser “embrulhada como múmia" 

da vitamina de abacate que não gostava de tomar de manhã

de visitar o peixe boi na Praça do Derby

de comer sanduíche de queijo no drive in


Trancaram meu peito

Perdi a chave

Construí um muro

Escondi a poesia


Era tudo saudade do meu pai

sábado, 10 de julho de 2021

Sábado



Depois da feira orgânica, café da manhã com mulheres queridas. Cada uma com sua história de vida. 

A pequena mesa redonda no terraço congraça nossas rotinas. 

A chuva caindo como cortina ali pertinho evoca os banhos na infância, as bicas de telha...

Em casa, experimento um momento só meu. Raro. 

A cozinha me convida pra um diálogo. 

Hoje quero leveza.

Um salmão com gergelim ao forno, ainda molhadinho... Batata doce assada. Na frigideira, cebolinha roxa, cogumelos de Paris e cenoura caramelizados. 

Não, não é sobre culinária.

É sobre prazer!

É sobre cozinhar pra si mesma e depois passar um café e comer um quadradinho de chocolate amargo, vendo aquele filme francês.

É sobre sentir devagar a crocância da cenoura, o sabor forte da cebolinha, a maciez do cogumelo e experimentar em cada garfada uma combinação diferente.

É sobre afagar o desejo de viver.

E amar a batata doce assada polvilhada com pimenta do reino. 

E sentir o salmão derretendo a cada mordida.

É sobre respeitar seu sábado. 

E prolongar a sensação de abraço.


Horizonte

 Pausar.  Simples e necessário! Tempo restaurador. Arrumar as gavetas da cabeça, acariciar a alma, alentar as dores, afagar os prazeres. Fec...