domingo, 26 de dezembro de 2021

pandemia

 

Hoje é véspera de natal e eu desejo imensamente a vida.

Que a gente continue desejando

Um sorvete, um beijo, uma viagem

Uma fatia de bolo, um abraço, um mergulho no mar.

É preciso sonhar.

Meu presente de natal é o meu sonho em estado de alerta,

Incomodando para que eu dele não deixe de precisar.

Hoje é véspera de natal e a vida plena é meu sonho de consumo.

domingo, 19 de dezembro de 2021

Quase tarde

 

Acordei sentindo o corpo todo meio dormente, meio vibrando. 

Um sono absolutamente profundo, Um despertar lento, relutante.

Aliás, a palavra é relutante.

Lutei muitas vezes. Insisti em perder.

Relutei por anos em aceitar. Acolher. Refusei oportunidades, me escondi atrás de tantos fantasmas. Meus esconderijos quase perfeitos.

Eu, minha principal algoz, dando voz a todos os comentários. Vestia a fantasia alheia e dela me apossava.

Capaz de criar tantas realidades, desci dos meus palcos, apaguei as luzes e me fechei no camarim. As cortinas seguiram abertas, sinalização para saída de emergência, fuga tragicamente planejada.

Mas, por maior que seja o bunker, um dia há que se abrir a porta e buscar água, comida, ajuda. Por mais perfeito que seja o disfarce, em algum momento a maquiagem borra, o chapéu voa, a máscara cai.

Foram muitos os passos. Primeiro, em círculos infundados, encontrando desculpas vazias baseadas num sentimento em nada parecido, mas denominado de amor. Depois, muito depois, novos caminhos titubeantes, cambaleantes, trôpegos.

Reabilitação para a vida.

Reaprendi a respirar, a nadar nas minhas águas turvas e bravas, a amar o que é meu. Uma passagem nem sempre linear.

Eis que hoje eu acordo sentindo diferente. Acolhendo meus prazeres, reivindicando minha memória, reconstruindo minha história. Eu não sou o desenho do passado. Eu não sou o decalque das décadas nostálgicas.

Bordo com palavras meus novos sonhos. Faço e refaço pontos que eu mesma criei. Misturo as cores que me aprazem. Acalmo minha pressa de viver, alimento a fome de ser.

Não me incomoda reciclar, reutilizar ou repaginar sentimentos. Não tenho a avidez capitalista do novo, do exclusivo, do todo meu. Vou trazendo na bagagem o que ainda me apraz. Carregando o peso que posso levar sozinha.

Aliás, esta foi a lição mais difícil de aprender. Fazer a mala para aquela viagem e só levar o necessário. Passei a fazer o exercício do minimalista. Experimentar o pequeno como se fosse o fundamental. 

O escasso, sem restrição.

Divagando e brincando com as palavras, me dou conta que ainda estou deitada, respeitando o ritmo do meu despertar.

Quase tarde, mas ainda manhã. 

Há tempo para celebrar o domingo.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Batuta do Seu José

A batuta do Seu José


Era julho de 2019. Meu penúltimo dia de umas férias rápidas em Paris, fui passar dez dias. Pouca bagagem, nenhuma intenção de fazer compras.

A ideia era flanar. Fiquei no apartamento de um amigo na Porte D’Orleans. 

Cheguei sem programação fixa, mas tinha uma única missão. Acordei na manhã ensolarada e rumei para a tarefa. Bati a Rue de Rome em Paris de cima abaixo e não achei a loja. Resumo da ópera: ninguém conhecia! Até que depois de arrastar meu pobre francês em boulangeries, entre os passantes... decidi me aventurar numa loja similar: Rome instruments. Entrei e encontrei exatamente o artigo em questão. Trouxe com todo cuidado pra Recife, pois era frágil. Passei umas duas horas batendo perna e achando que o meu francês estava cada vez menos entendível... mas na verdade meu irmão tinha me recomendado muitíssimo e com veemência uma loja que jamais existiu na história da cidade luz!!!!

Valeu a pena quando entreguei o pacote bem embaladinho. Um tesouro pra ele. 

Meu irmão José Renato é Maestro. A encomenda, duas batutas de fibra de carbono, levíssimas. Um desses exemplos em que o “vale quanto pesa” não se aplica.

Aprendi com ele que a dedicação tem sua recompensa. Que precisamos acreditar e perseguir os objetivos. Com Nato, seis anos mais velho que eu, li poesia até tarde da noite. Acordei cedo para ir às aulas de piano num fusquinha sem limpador de para-brisas, mas que nos livrava do ônibus lotado.

Zé Renato, hoje maestro da Orquestra Sinfônica do Recife e da Orquestra Criança Cidadã, é meu tudo: O irmão-abraço, o irmão-acolhimento, o irmão-afeto. 

Fui mãe de leite da sua primeira filha, sou madrinha da caçula. Nossas vidas se entrelaçam em um caminho de partilha.

Estas fotos são do primeiro concerto dele com a orquestra de meninos e meninas do Coque. 

Sentei no gargarejo e me emocionei com o repertório, com o solo de viola e com a última peça, de Beethoven. Pensei na história de cada jovem músico que estava ali, refiz na mente nossa trajetória.

Mas nada me tocou tanto, nada me levou para tão distante... Eu e a minha mania de ver as sutilezas... 

No meio da última peça, a batuta de fibra de carbono caiu da mão do Maestro.

Ouvi o toque da queda, tive um pré-impulso de ir resgatar, mas fiquei ali quietinha. Ele continuou regendo. Eu parei o mundo e fiquei acompanhando as mãos expressivas do meu irmão. As mãos que pediam calma, paixão, força e unidade. Uma pausa nos Cellos e alguém coloca a batuta dele na estante. Com elegância e intimidade, ele dá um tempo de pega novamente seu instrumento.

Pensei comigo: eu andaria a Rue de Rome mais umas cem vezes para viver este momento. Nem sei se a batuta que ele estava usando era a mesma que eu trouxe na sacolinha de mão com zelo extremo, mas, como dizem os franceses, Tampi...

Acabou o concerto, aplaudi toda a história dele ali. 

Aplaudi as noites de estudo, os dias de suor. 

Aplaudi os 30 anos de aulas no conservatório.

Aplaudi a verdade que existe nos seus gestos.

Aplaudi o meu irmão, que carrega o coração na ponta da sua batuta.

sábado, 11 de dezembro de 2021

Clarice, vem conversar!

O mormaço emerge do chão.

A chuva fina que cai insegura se desfaz antes de tocar no solo. 

O suor que traça caminhos incertos pelas minhas costas chega a fazer cócegas.

Recife parece um forno.

As roupas desfilam grudadas nos corpos, o pensamento anda em câmera lenta. 

No supermercado aqui perto de casa o tomate está custando R$ 9,29 reais o quilo. Onde vai parar este mundo? Um simplório molho de tomate com cebola, louro e tomilho virou iguaria. Uma pitada de sal e pimenta pra levantar o sabor... O molho vinagrete do arrumadinho do final de semana, ou pra acompanhar aquele churrasco... aliás, a carne também está pela hora da morte. Melhor mudar o cardápio do domingo.

Volto com as compras e quero que o mundo congele, literalmente. 

A umidade do ar não é assim tão relativa. Me parece absoluta. 

Recife parece um forno.

E eu cozinho as ideias, tempero os sentimentos enquanto sinto o peso da tarde.

Sonho com o pôr do sol, desejo a brisa que vem do mar. 

Recife, esta cidade litorânea que respira agreste.

O mapa não transpira, não se compadece de mim.

Minha cabeça dói. Deve ser o calor. 

Chego com as compras, vou guardando, abro logo o pacote de chocolate amargo e destaco um pedacinho. Mordisco as pontas e sinto o agridoce da nota de sal. 

Gosto dos opostos. Gosto de sentir na boca os sabores tomando lugar, desenhando aromas, afagando memórias.

Vou ordenando meus dias na cabeça enquanto guardo o milho de pipoca, lavo as frutas e separo os legumes.

O que eu diria a ela no dia do seu aniversário? Como contaria sobre este Recife tão distinto da sua infância? 

Um Recife que há dois anos não tem carnaval. 

Um Recife, cidade desigual.

Um Recife que amo como talvez, você também.

Queria te dar de presente a cidade que mora no meu peito.

Queria dividir um sorvete de tapioca, andar na beira do rio e dar boa tarde ao vendedor de amendoim. Torrado ou cozinhado?

Sexta-feira, 10 de dezembro. Dia que se faz mais um.

Clarice hoje faz 101 anos.

A chuva fina canta melodia nas folhas da papoula. O calor desenha arabescos no vidro da janelas. 

Senta aqui, Clarice... vamos conversar.


Na foto: Clarice menina.

Horizonte

 Pausar.  Simples e necessário! Tempo restaurador. Arrumar as gavetas da cabeça, acariciar a alma, alentar as dores, afagar os prazeres. Fec...