segunda-feira, 21 de março de 2022

Horizonte

 Pausar. 

Simples e necessário!

Tempo restaurador.

Arrumar as gavetas da cabeça, acariciar a alma, alentar as dores, afagar os prazeres.

Fechar os olhos e sonhar.

Se permitir ser e estar.

Pausar.

Com o mundo girando.

Ninar o cansaço até o sono, enfim.

Olhar de frente pro espelho

Mais profundo

O imenso dentro.

Pausar.

E, finalmente, nada a fazer.

Só o sol que tinge a pele

O vento que dança com os cabelos

O mar que canta poesia nos ouvidos.

Estou voltando, a caminho. Chego já.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Autorretrato


Vou começar pelas ancas. Aquelas fartas, curvas, fora do padrão. As que abrigaram os rebentos. As mesmas, redutos da paixão. Caverna ensolarada que guarda desejos. Sou uma mulher de um metro e meio e quase um metro de ancas. 

Afino pra cima. O busto não representa tanto. Tenho a alegria de chegar aos 50 e gostar de mim. Lembrar que estes peitos alimentaram vidas, último fio de elo físico com as crias. Estão aqui, nem tão firmes, mas fortes. Sou uma mulher completa na minha contradição. Poesia abstrata,na pele concreta.

No rosto, lábios grossos e grandes, nariz de porrote e olhos pequenos. Sou uma mulher comum, fruto da mistura. Meus olhos verdes no cabelo escuro. Uns cachos nas pontas, ondulado a silhueta, batendo na nuca. Minhas mãos pequenas nas coxas grossas. Os tornozelos roliços, os braços finos, o osso do punho proeminente.

Calço 35. Sutiã P, calcinha M. Uma mulher inteira desigual. Dizem que deveria ter crescido mais. Desconfio que se cresci, foi pra dentro. Nas entranhas é que estão as profundezas. É aí que fico maior, neste vasto campo minado e florido. Neste latifúndio sem reforma agrária que é o sentir. Um feudo a ser explorado, pasto infinito de ideias e sensações.

Sou uma mulher pequena e mediana. Repito rotinas buscando aterrar. Sou ar. Gêmeos, ascendente Aquário, lua em Libra. Disseram outro dia que não deveria estar viva. Deve ser porque gosto de voar. E, sendo assim, de pousar. 

Gosto de mesa posta, de comida cozinhando, do cheiro do feijão perfumando a casa, das risadas que saem de momentos displicentes. Não faltam gás, coragem e alma. Esta última segue caminhando com cicatrizes, marcas, memórias e algumas dores. Carrego a mulher que sou. 

Me sobra crença. Meu estoque de fé veio no atacado. Não sou do varejo. Sou insistente, cultivo a teimosia, semeio minha opinião. Mudo de lugar, ponto de vista, que nem o sol ao longo do ano. E choro como a chuva de maio, mês que me recebeu neste mundo. Aprendi a chover de alegria e de tristeza, de emoção e de pesar. Aprendi a desaguar e inundar, conforme a maré.

Nasci numa cidade de pedra e mar. De lama e mangue. De arte e desigualdade. Quebro as ondas nos arrecifes como o oceano em Boa viagem. Vou esculpindo o espírito. Vou queimando a pele, vou desidratando. 

Quando me deparo com o espelho, vejo muito mais do que escrevo agora. Vejo passado e presente pulsando num diálogo que adivinha o futuro. E nada vejo, ao mesmo tempo. Os olhos mais cansados, perdem os detalhes, escondem as pistas do tempo. Sinto que me perco, antes de achar, nenhuma certeza.

Meu autorretrato se faz a cada dia. Não ouso assinar embaixo, não reconheço firma. Não sou conclusiva. As águas que no meu corpo correm já passaram por todas as veias, tantas vezes e não são as mesmas. Vida, esta duna que é levada pelo vento.

domingo, 26 de dezembro de 2021

pandemia

 

Hoje é véspera de natal e eu desejo imensamente a vida.

Que a gente continue desejando

Um sorvete, um beijo, uma viagem

Uma fatia de bolo, um abraço, um mergulho no mar.

É preciso sonhar.

Meu presente de natal é o meu sonho em estado de alerta,

Incomodando para que eu dele não deixe de precisar.

Hoje é véspera de natal e a vida plena é meu sonho de consumo.

domingo, 19 de dezembro de 2021

Quase tarde

 

Acordei sentindo o corpo todo meio dormente, meio vibrando. 

Um sono absolutamente profundo, Um despertar lento, relutante.

Aliás, a palavra é relutante.

Lutei muitas vezes. Insisti em perder.

Relutei por anos em aceitar. Acolher. Refusei oportunidades, me escondi atrás de tantos fantasmas. Meus esconderijos quase perfeitos.

Eu, minha principal algoz, dando voz a todos os comentários. Vestia a fantasia alheia e dela me apossava.

Capaz de criar tantas realidades, desci dos meus palcos, apaguei as luzes e me fechei no camarim. As cortinas seguiram abertas, sinalização para saída de emergência, fuga tragicamente planejada.

Mas, por maior que seja o bunker, um dia há que se abrir a porta e buscar água, comida, ajuda. Por mais perfeito que seja o disfarce, em algum momento a maquiagem borra, o chapéu voa, a máscara cai.

Foram muitos os passos. Primeiro, em círculos infundados, encontrando desculpas vazias baseadas num sentimento em nada parecido, mas denominado de amor. Depois, muito depois, novos caminhos titubeantes, cambaleantes, trôpegos.

Reabilitação para a vida.

Reaprendi a respirar, a nadar nas minhas águas turvas e bravas, a amar o que é meu. Uma passagem nem sempre linear.

Eis que hoje eu acordo sentindo diferente. Acolhendo meus prazeres, reivindicando minha memória, reconstruindo minha história. Eu não sou o desenho do passado. Eu não sou o decalque das décadas nostálgicas.

Bordo com palavras meus novos sonhos. Faço e refaço pontos que eu mesma criei. Misturo as cores que me aprazem. Acalmo minha pressa de viver, alimento a fome de ser.

Não me incomoda reciclar, reutilizar ou repaginar sentimentos. Não tenho a avidez capitalista do novo, do exclusivo, do todo meu. Vou trazendo na bagagem o que ainda me apraz. Carregando o peso que posso levar sozinha.

Aliás, esta foi a lição mais difícil de aprender. Fazer a mala para aquela viagem e só levar o necessário. Passei a fazer o exercício do minimalista. Experimentar o pequeno como se fosse o fundamental. 

O escasso, sem restrição.

Divagando e brincando com as palavras, me dou conta que ainda estou deitada, respeitando o ritmo do meu despertar.

Quase tarde, mas ainda manhã. 

Há tempo para celebrar o domingo.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Batuta do Seu José

A batuta do Seu José


Era julho de 2019. Meu penúltimo dia de umas férias rápidas em Paris, fui passar dez dias. Pouca bagagem, nenhuma intenção de fazer compras.

A ideia era flanar. Fiquei no apartamento de um amigo na Porte D’Orleans. 

Cheguei sem programação fixa, mas tinha uma única missão. Acordei na manhã ensolarada e rumei para a tarefa. Bati a Rue de Rome em Paris de cima abaixo e não achei a loja. Resumo da ópera: ninguém conhecia! Até que depois de arrastar meu pobre francês em boulangeries, entre os passantes... decidi me aventurar numa loja similar: Rome instruments. Entrei e encontrei exatamente o artigo em questão. Trouxe com todo cuidado pra Recife, pois era frágil. Passei umas duas horas batendo perna e achando que o meu francês estava cada vez menos entendível... mas na verdade meu irmão tinha me recomendado muitíssimo e com veemência uma loja que jamais existiu na história da cidade luz!!!!

Valeu a pena quando entreguei o pacote bem embaladinho. Um tesouro pra ele. 

Meu irmão José Renato é Maestro. A encomenda, duas batutas de fibra de carbono, levíssimas. Um desses exemplos em que o “vale quanto pesa” não se aplica.

Aprendi com ele que a dedicação tem sua recompensa. Que precisamos acreditar e perseguir os objetivos. Com Nato, seis anos mais velho que eu, li poesia até tarde da noite. Acordei cedo para ir às aulas de piano num fusquinha sem limpador de para-brisas, mas que nos livrava do ônibus lotado.

Zé Renato, hoje maestro da Orquestra Sinfônica do Recife e da Orquestra Criança Cidadã, é meu tudo: O irmão-abraço, o irmão-acolhimento, o irmão-afeto. 

Fui mãe de leite da sua primeira filha, sou madrinha da caçula. Nossas vidas se entrelaçam em um caminho de partilha.

Estas fotos são do primeiro concerto dele com a orquestra de meninos e meninas do Coque. 

Sentei no gargarejo e me emocionei com o repertório, com o solo de viola e com a última peça, de Beethoven. Pensei na história de cada jovem músico que estava ali, refiz na mente nossa trajetória.

Mas nada me tocou tanto, nada me levou para tão distante... Eu e a minha mania de ver as sutilezas... 

No meio da última peça, a batuta de fibra de carbono caiu da mão do Maestro.

Ouvi o toque da queda, tive um pré-impulso de ir resgatar, mas fiquei ali quietinha. Ele continuou regendo. Eu parei o mundo e fiquei acompanhando as mãos expressivas do meu irmão. As mãos que pediam calma, paixão, força e unidade. Uma pausa nos Cellos e alguém coloca a batuta dele na estante. Com elegância e intimidade, ele dá um tempo de pega novamente seu instrumento.

Pensei comigo: eu andaria a Rue de Rome mais umas cem vezes para viver este momento. Nem sei se a batuta que ele estava usando era a mesma que eu trouxe na sacolinha de mão com zelo extremo, mas, como dizem os franceses, Tampi...

Acabou o concerto, aplaudi toda a história dele ali. 

Aplaudi as noites de estudo, os dias de suor. 

Aplaudi os 30 anos de aulas no conservatório.

Aplaudi a verdade que existe nos seus gestos.

Aplaudi o meu irmão, que carrega o coração na ponta da sua batuta.

sábado, 11 de dezembro de 2021

Clarice, vem conversar!

O mormaço emerge do chão.

A chuva fina que cai insegura se desfaz antes de tocar no solo. 

O suor que traça caminhos incertos pelas minhas costas chega a fazer cócegas.

Recife parece um forno.

As roupas desfilam grudadas nos corpos, o pensamento anda em câmera lenta. 

No supermercado aqui perto de casa o tomate está custando R$ 9,29 reais o quilo. Onde vai parar este mundo? Um simplório molho de tomate com cebola, louro e tomilho virou iguaria. Uma pitada de sal e pimenta pra levantar o sabor... O molho vinagrete do arrumadinho do final de semana, ou pra acompanhar aquele churrasco... aliás, a carne também está pela hora da morte. Melhor mudar o cardápio do domingo.

Volto com as compras e quero que o mundo congele, literalmente. 

A umidade do ar não é assim tão relativa. Me parece absoluta. 

Recife parece um forno.

E eu cozinho as ideias, tempero os sentimentos enquanto sinto o peso da tarde.

Sonho com o pôr do sol, desejo a brisa que vem do mar. 

Recife, esta cidade litorânea que respira agreste.

O mapa não transpira, não se compadece de mim.

Minha cabeça dói. Deve ser o calor. 

Chego com as compras, vou guardando, abro logo o pacote de chocolate amargo e destaco um pedacinho. Mordisco as pontas e sinto o agridoce da nota de sal. 

Gosto dos opostos. Gosto de sentir na boca os sabores tomando lugar, desenhando aromas, afagando memórias.

Vou ordenando meus dias na cabeça enquanto guardo o milho de pipoca, lavo as frutas e separo os legumes.

O que eu diria a ela no dia do seu aniversário? Como contaria sobre este Recife tão distinto da sua infância? 

Um Recife que há dois anos não tem carnaval. 

Um Recife, cidade desigual.

Um Recife que amo como talvez, você também.

Queria te dar de presente a cidade que mora no meu peito.

Queria dividir um sorvete de tapioca, andar na beira do rio e dar boa tarde ao vendedor de amendoim. Torrado ou cozinhado?

Sexta-feira, 10 de dezembro. Dia que se faz mais um.

Clarice hoje faz 101 anos.

A chuva fina canta melodia nas folhas da papoula. O calor desenha arabescos no vidro da janelas. 

Senta aqui, Clarice... vamos conversar.


Na foto: Clarice menina.

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Um teatro é um abraço



Não leve em consideração esta foto amadora. Foi o melhor que consegui. A luz estourada, a falta de foco e enquadramento, a evidência na cortina encarnada com franjas douradas, os arabescos que aparecem na penumbra e quase nada dizem do momento que vivi. O piano parece até mais magro na imagem, uma perspectiva pouco usual. O pianista, que tinha o holofote sobre si, no meu registro é um homem sem rosto. O artista com pele de cera.
- E porque, então insistir em publicar e descrever uma foto tão insignificante?
- Pela força do momento.
O palco é do Teatro de Santa Isabel. Desde criança frequento o lugar. Já vi espetáculo da plateia, dos camarotes, das frisas, da torrinha e até das coxias. Já estive na plateia e no palco. Ri e chorei. Aplaudi, pedi bis. De monólogo a orquestra. Peça infantil e dança. Teatro de bonecos e coral. Eu poderia lembrar muito mais.
Um teatro é
um abraço
. E no desenho do Santa Isabel, o abraço é real. As frisas contornam a plateia. São braços sinuosos e roliços que envolvem as cadeiras.
O que posso ver além da foto é a emoção de ter voltado ao teatro depois de um ano e oito meses de jejum. Acho que nunca fiquei tanto tempo sem pisar ali. Fui chegando e logo na porta recebi a acolhida de dona Ivete, que vende cerveja, café, confeito, chocolate e pipoca.
-Quanto tempo! Foi ela me falando, em tom de festa.
O que posso ver além da foto é o cheiro da sala de espetáculo, o meu pé pisando no carpete macio, as escadas que me conduzem ao meu lugar. O toque triplo que avisa o início do espetáculo. As luzes se apagando aos poucos. A expectativa de comungar de mais uma aventura.
Hoje foi o primeiro concerto desde o início da pandemia. O teatro estava “lotado”, com apenas 30% da capacidade ocupada. E eu lá 😊
E o espetáculo? O piano esculpido e lapidado de Luís Felipe Oliveira. A música que atravessa a gente sem parcimônia. A capacidade de revirar as tripas da alma. O pernambucano de gravatá flui. Interpreta Beethoven, Lizt, Dutilleux e Chopin num diálogo forte, doce, emocionado. Na minha cadeira, os óculos ficaram embaçados algumas vezes. A alegria de compartilhar tudo aquilo. A força da arte.
O tempo passou espichado, querendo que não acabasse nunca. Na última peça um quinteto de cordas acompanhou o pianista. E eu ali querendo absorver cada segundo. Laila no palco com sua viola, uma sianinha que enfeita as vestes da minha ânima.
Quando a luz acendeu, eu já estava em pé. Um grito de BRAVO me saiu inadvertidamente, meio tímido ao mesmo tempo. Como se o distanciamento social ou a abstinência tivessem de alguma forma me atingido.
O espetáculo acabou e eu juro a vocês que trouxe partes deles comigo. Aliás, acho que ele começou muito antes, quando Dante me convidou para ir ao teatro. Quando escolhi o vestido e pedi o uber. Quando desci com Luís e Lis e nos juntamos a Dante no café do Teatro. O primeiro marejar foi fruto de me ver com meus filhos na frisa. Tão pequeninos eu os trazia pelas mãos nos domingos de tarde. Senti o passado com seu negativo não revelado projetando as imagens...
Saí do Teatro meio muda, meio exausta. Meio saudosa, meio de ressaca de tanto sentir. Saí querendo que o teatro me abraçasse mais um pouco. E querendo também descansar. Saí como uma criança que ama e se exaure na primeira festa de aniversário.
Aqui muito pra nós, acho que o Santa Isabel estava também saudoso de mim. Minha crônica poética dá conta disso. Meus versos de algum jeito também são filhos daquelas paredes seculares. Sou bisneta ou afilhada da arquitetura. Sou formada nesta escola.
Eu só pensava em chegar em casa, escrever este texto antes que ele se diluísse na minha rotina de amanhã.

Horizonte

 Pausar.  Simples e necessário! Tempo restaurador. Arrumar as gavetas da cabeça, acariciar a alma, alentar as dores, afagar os prazeres. Fec...