quarta-feira, 29 de junho de 2011

LIBERDADE

Na minha terra, menino nasce que nem mato. E cresce que nem erva daninha. E aprende tudo quanto não presta antes mesmo de saber se virar.
As grandes escolas são as esquinas, e os professores, meninos franzinos só que escolados. É isso. Escolas lá de onde eu vim são as ruas.
A gente escreve no chão, de faca. A gente soletra somente a língua das ruas. A gente calcula apenas o entra e sai de menino nas bocadas.
Com meu pai foi assim. Com meu avô foi assim. Segui a tradição familiar e não neguei fogo.
Em pouco tempo ditava ordens. Menino de cambito fino ainda, mal conseguia carregar a arma importada, eu era o rei.
Aprendi a ser macho antes de engrossar a voz e andava pelas ruas na moral. Minha voz era a justiça, era a lei e a força.
E quando se vive assim, tudo acontece muito rápido. Um relâmpago.
E foi num desses estrondos que eu caí nas mãos dos cara da viatura. Vacilei. Também, acho que me entregaram.
Não interessa. Vacilei.
Me levaram, malharam nas minhas costas. Sentia o sangue quente escorrer, quase como um sonho. O carcereiro me entregou o jornal no dia seguinte com a minha foto. A boca estourada, o olho roxo. Me vi pela primeira vez. O homem me tinha como troféu. Eu só via as figuras. Ler não era comigo. O homem que tripudiava do meu lado traduziu as letras enormes: “Maior traficante da região foi preso”.
Era eu.
O menino que veio do esgoto, que cresceu na fome e triunfou com os homem do bagulho.
Até que deu orgulho.
Me ficharam. Esperaram sarar os ferimentos do rosto e fizeram uma foto, depois sujaram meus dedos de tinta e eu me identifiquei.
Seu escrever meu nome não.....
No presídio encontrei uns parceiros. Fui chegando devagar e fiquei na minha. Pensei em me regenerar e comprar um barraco quando saísse dali. Queria filho nem mulher não. Minha sina era sozinho mesmo.
Não tem o que fazer na prisão. Eu era bicho criado solto. Não sabia nem ver TV direito.
Tinha igreja lá dentro. Eu achava bonito aquele povo com o livro debaixo do braço. Achava que aquele livro era a chave que faltava pra eu me ajeitar.
Mas não deu muito certo não... sou homem de ter cabresto não.....
Ninguém me visitava naquele lugar. Não tinha mulher, nem mãe, nem irmã. Ás vezes um vizinho de cela me contava que tinha lido no jornal que os poliça tinham invadido e matado um monte de gente lá na minha área.
E eu ali, sem ter jeito de proteger o meu povo.....
Já fazia uns anos, recebi uma carta. Envelope branco, umas letra azul. O meu amigo de cela se ofereceu pra ler. E me deu uma raiva danada! A primeira carta que recebi na vida era outro que ia ler???? Isso tem jeito?????
Guardei o envelope fechadinho, como recebi e pensei que um dia ia aprender a ler as letras dos doutor.
Eu tinha era vergonha de ir pras aulas que umas moças ofereciam lá na cadeia. Pensava que se eu fosse burro e não conseguisse, seria vergonhoso por demais.
Passava na porta da classe, sentava no chão embaixo da janela e ficava ouvindo. Tinha vez que os alunos riam, tinha vez que estavam mais calados. A professora me parecia um anjo. Um dia peguei a carta e fui pedir a ela que lesse pra mim.
Mas na horinha mesmo eu voltei atrás. Que homem sou eu ! Tomei coragem e pedi pra assistir a aula.
Aquelas letras embaralhavam minha cabeça. Demorou pra meu juízo se entender com o lápis e o papel. Na verdade, quase um ano.
Aos poucos, fui me animando. Queria escrever, queria ler. Um bicho curioso começou a viver na minha cabeça, me acordava de noite. Eu só pensava em saber ler.
Até que um dia, tomei coragem e pedi pra professora me ajudar a ler aquela carta. Dois anos depois de ter recebido.
A professora primeiro mostrou meu nome na frente do envelope e o endereço da cadeia.
Atrás, tinha a pessoa que escreveu. Não era uma pessoa, era do Governo.
Oxe... o que o Governo quer comigo???
Será que eu tinha cometido outro crime?
Ela abriu o envelope com uma tesoura, bem direitinho. A carta tinha uma folha só.
O papel da carta era grosseiro, e era escrito por computador. Só tinha uma assinatura lá embaixo.
Me chamaram de “Prezado Senhor”. Achei bom. Nunca ninguém tinha me chamado de Senhor, quando mais de prezado.....
E a notícia tinha umas três linhas, mas era grandiosa. A notícia não poderia ser melhor.
A carta indicava que eu podia sair da prisão, que seria monitorado por uma assistente social, e que poderia até trabalhar.
Imagina só! Dois anos pra conseguir a liberdade!!!! A liberdade que eu me dei lendo sozinho a carta!
Arrumei meus terém e mostrei a carta pro diretor do presídio.
Fechei a mala e segui até a rua. Já tinha meus cabelos brancos, as pernas mais fracas.
Pela primeira vez na vida, li o letreiro do ônibus. Na padaria, li o preço das coisas.
Comprei pão e café. E segui em frente.
Não quero morrer feito mato.
Quero florescer feito árvore.

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