quarta-feira, 18 de outubro de 2017
velha infância
Eu tava vendo fotos. E comecei a ver histórias. E capítulos das nossas vidas, e versos de Cecília Meirelles.
E banhos no mar da praia de Pau Amarelo, com dona Creuza levando vitamina de banana pra gente. E "bozeguins" nos queimando no mar e a gente verde de picrato de butezin.
E me chegaram as viagens de ônibus pro Colégio. Os tuppewares com nescau pro lanche. E as luas com ciranda na beira do mar.
Foram talvez estas lembranças que instigaram a saudade.
Te liguei ontem, mas não soube poetizar ou prozear...
Hoje veio o mesmo cheiro, aquele da safra de manga do quintal. E os cachos de flor da acácia azul. E os soldadinhos de chumbo no alpendre. E vc com as botas correndo no terreiro.
Comer torrada com doce de goiaba, brigar pelo último biscoito do pote.
E as bonecas de pano, e o Ângelo negro e a Valéria loura.
Um monte de tempo que a gente passava cantando, e dançando... que saudade, do nada.
O dia das crianças me lembrou nossa infância partilhada.
Fui atrás das fotos, a gente juntas. Quase não encontrei. Mas me dei conta das lembranças que seguem na máquina fotográfica da retina.
E que bom que seguimos nos divertindo juntas. No carnaval, no nascimento das crias, no meu níver este ano.
Assim seja. Seja assim.
A beleza de quem aprendeu a amar antes mesmo de falar.
Ana Luiza, talvez seja você quem mais me acompanha vida afora. Feliz dia das crianças que fomos e seremos sempre. 💜
terça-feira, 12 de setembro de 2017
roda de mulheres
Eu tenho em mim minha avó, minha mãe, minhas muitas mulheres.
Habitam, coexistem e se misturam num fluxo de vida sem margens.
Trago em mim estas ancestralidades. Os filhos gestados, os partos de luz, as vidas interrompidas, os sonhos nunca ousados.
Há tempo elas hibernavam. Talvez nunca tivessem, ao longo de tantas gerações, vivido um verão. Imagino primaveras ocultas que as faziam ultrapassar outonos severos. Tantas noites tão longas sem usufruir do sereno...
Ouso viver as vidas que nunca foram minhas, reinventar o caminho sem querer reescrever história. O ser que me cabe é imenso! Mora em mim dona Lindalva, mulher da Guaiuba, interior brabo do Ceará. Filha de coronel, tinha suas roupas compradas em Paris... mas nunca saía de casa. Nunca entrou numa cozinha. Nunca aprendeu a cavalgar. Criou 11 filhos.
Reside no mesmo lugar Dona Francisquinha. Cozinheira de fazer gemer, mestra na arte do crochê, amante do rádio e do futebol. Ela, de Sobral. Teve 9 filhos, criou 8.
As duas, minha avós. Nascidas no início do século XX. Conhecendo a mim mesma, talvez eu entenda hoje a tristeza ou a angústia, a inquieta sensação de não fazer parte de nenhum lugar que havia nas suas almas. Minha avó Lindalva era triste. Minha avó Fransquinha, amarga. Duas mulheres fortes que, tal qual pés de gueixas, precisaram caber em vidas muito menores. Não cabia. Deformava.
Elas, tatuadas em mim, na minha alma inquieta de artista, na minha ânima impetuosa, no meu caráter intempestivo, me impulsionam para a luta. A cura de tantas e tantas e tantas luas de silêncio pode estar aqui. Quando a vida inspira mais vida, reclama liberdade, grita por um mundo outro, possível.
Imagino que se elas tivessem sentado um dia numa roda de mulheres, ouvido e falado, trocado mais olhares, abraços, a missão desta geração seria menor. Eram mulheres de respeito, criadas na solidão feminina da esposa e mãe compulsória.
Tantos invernos sobre vidas longas de nãos!
A minha aurora veio lenta, preguiçosa, quase relutante. Um alvorecer incerto, tardio, relutando sair da noite. Mas não se pode ignorar o sol no olho, cegando a gente de tanta luz. E cá estou eu. Sentada numa roda de mulheres poderosas, inspiradoras e tão fortes! Cheguei pisando leve, sentei na pontinha da cadeira, com medo de não pertencer a este lugar. Minha voz nem tinha legitimidade pra mim. O discurso era tão distante, mas tocava no meu peito congestionado de dor.
E a dor foi dando espaço à certeza. E metabolizando-se em força. Hoje tenho assento na minha convicção. Pelas minhas avós, pelas minhas tias, pela minha mãe, por minhas irmãs, minhas sobrinhas e pelas gerações que virão.
Habitam, coexistem e se misturam num fluxo de vida sem margens.
Trago em mim estas ancestralidades. Os filhos gestados, os partos de luz, as vidas interrompidas, os sonhos nunca ousados.
Há tempo elas hibernavam. Talvez nunca tivessem, ao longo de tantas gerações, vivido um verão. Imagino primaveras ocultas que as faziam ultrapassar outonos severos. Tantas noites tão longas sem usufruir do sereno...
Ouso viver as vidas que nunca foram minhas, reinventar o caminho sem querer reescrever história. O ser que me cabe é imenso! Mora em mim dona Lindalva, mulher da Guaiuba, interior brabo do Ceará. Filha de coronel, tinha suas roupas compradas em Paris... mas nunca saía de casa. Nunca entrou numa cozinha. Nunca aprendeu a cavalgar. Criou 11 filhos.
Reside no mesmo lugar Dona Francisquinha. Cozinheira de fazer gemer, mestra na arte do crochê, amante do rádio e do futebol. Ela, de Sobral. Teve 9 filhos, criou 8.
As duas, minha avós. Nascidas no início do século XX. Conhecendo a mim mesma, talvez eu entenda hoje a tristeza ou a angústia, a inquieta sensação de não fazer parte de nenhum lugar que havia nas suas almas. Minha avó Lindalva era triste. Minha avó Fransquinha, amarga. Duas mulheres fortes que, tal qual pés de gueixas, precisaram caber em vidas muito menores. Não cabia. Deformava.
Elas, tatuadas em mim, na minha alma inquieta de artista, na minha ânima impetuosa, no meu caráter intempestivo, me impulsionam para a luta. A cura de tantas e tantas e tantas luas de silêncio pode estar aqui. Quando a vida inspira mais vida, reclama liberdade, grita por um mundo outro, possível.
Imagino que se elas tivessem sentado um dia numa roda de mulheres, ouvido e falado, trocado mais olhares, abraços, a missão desta geração seria menor. Eram mulheres de respeito, criadas na solidão feminina da esposa e mãe compulsória.
Tantos invernos sobre vidas longas de nãos!
A minha aurora veio lenta, preguiçosa, quase relutante. Um alvorecer incerto, tardio, relutando sair da noite. Mas não se pode ignorar o sol no olho, cegando a gente de tanta luz. E cá estou eu. Sentada numa roda de mulheres poderosas, inspiradoras e tão fortes! Cheguei pisando leve, sentei na pontinha da cadeira, com medo de não pertencer a este lugar. Minha voz nem tinha legitimidade pra mim. O discurso era tão distante, mas tocava no meu peito congestionado de dor.
E a dor foi dando espaço à certeza. E metabolizando-se em força. Hoje tenho assento na minha convicção. Pelas minhas avós, pelas minhas tias, pela minha mãe, por minhas irmãs, minhas sobrinhas e pelas gerações que virão.
quinta-feira, 3 de agosto de 2017
De que vale uma casa velha?
Sou moradora da Rua da Glória, no bairro da Boa Vista, no Centro do Recife. Moro numa destas casas orgânicas, antigas e generosas. Abro a janela e toco meu piano. Imagino a rua sorrindo, com saudade do tempo em que cada casa tinha um piano.
A Glória da ocupação dos judeus no início do século XX. A Glória do centro islâmico no século XXI. A minha Glória. A minha memória afetiva. O que sentir quando mais uma casa na rua é destruída pelo fogo? Mais uma.
Dessa vez, o sobrado dos girassóis na janela. Que fica na frente do centenário convento da Glória, sobrado vizinho à primeira sede do Clube Lenhadores. De que vale uma casa velha?
De que valem os pobres seres que nela habitam empilhados feito papelão? Faz um tempo, não muito, que um depósito de papel pegou fogo na Rua Velha. Bombeiro, Defesa Civil, gente morta, interdição da rua e tapume. Pronto. Foi feita a política institucional.
Depois, outros caíram. Foi a chuva. Foi o tempo. Foi a vontade de Deus. Foi a falta de uma política de respeito às pessoas e à memória. Foi mais um.
Era uma dessas pensões sustentadas pelo aluguel social – a política habitacional do município. Um sobrado secular (quem se importa? Não tinha nem espaço gourmet…). Um curto-circuito, numa casa caindo aos pedaços. Piso de madeira corrida, gente entulhada em cubículos.
Bombeiro, Defesa Civil, Samu, interdição da rua e tapume. Pronto. Foi feita a política institucional. Na cidade dos prédios espelhados que nada refletem de história, o que valem uns pobres quase cidadãos sentados no meio-fio.
A omissão mata. O descaso mata. A falta de respeito mata. E duas pessoas morreram no incêndio do sobrado dos girassóis na Rua da Glória. Os bombeiros não ouviram a população, que dava notícia da falta. Interditaram a casa sem a devida busca.
Os moradores, desolados, quebraram o cadeado, furaram o bloqueio e encontraram seus mortos. Triste. Desesperador. Apavorante. Essa chuva insistente não lava a alma. Encharca o peito e sufoca. A rua muda. Intranquila de dor.
sexta-feira, 30 de junho de 2017
Vida a vácuo
Quando se abre a tampa do pote, o perfume é o primeiro a se anunciar. Seus delicados e personalistas tons, num degradê de estímulos.
O
perfume sugere o sabor. Induz o pensamento, persuadindo a memória, catando
lembranças, futucando o passado.
Assim mesmo é com ela.
Abre-se o pote da vida e a timidez do
perfume vai saindo aleatória, encaminhada pelo curso da brisa que passa sem
muito pesar.
Pote fechado há tanto tempo, curando o seu conteúdo,
apurando os sabores e envelhecendo seus tecidos.
Um dia, a luz está mais clara, os sinais são menos vermelhos
e a vida abre passagem.
A tampa, resistente ao vácuo, finalmente eclode.
Seu estampido surdo.
Saem sabores inéditos, sai a vida cultivada ali, no simulacro vedado.
Seu estampido surdo.
Saem sabores inéditos, sai a vida cultivada ali, no simulacro vedado.
E nada de tão novo acontece, a não ser a propriedade de si.
A não ser a sensação de que a ninguém pertence sua vida.
Uma
vida marinando nas décadas de uma casa cheia.
De uma cozinha repleta de amor, de um afeto tão imenso, capaz de blindar a si mesma de qualquer hecatombe.
De uma cozinha repleta de amor, de um afeto tão imenso, capaz de blindar a si mesma de qualquer hecatombe.
Uma
vida na prisão protetora e restauradora da embalagem a vácuo.
terça-feira, 27 de junho de 2017
alarme
Sou a urgência de um alarme.
Com a carência do grito que só cessa a partir de um toque.
Resiliente como o berro ritmado.
Com a mesma insistência.
O alarme que não espera o tempo de quem dorme.
Que não se compadece do cansaço ou do sonho.
Sou isso, na verdade.
Urgente
Carente
Resiliente
Insistente
Ausente
Falante
Silente.
Com a carência do grito que só cessa a partir de um toque.
Resiliente como o berro ritmado.
Com a mesma insistência.
O alarme que não espera o tempo de quem dorme.
Que não se compadece do cansaço ou do sonho.
Sou isso, na verdade.
Urgente
Carente
Resiliente
Insistente
Ausente
Falante
Silente.
quarta-feira, 14 de junho de 2017
A culpa é do Chileno
Fiquei sozinha com a taça. Sozinha não. Jaziam na mesa ainda um quarto de torta de limão, uma travessa com torradas, uns limões espremidos e meia garrafa de vinho.
Matamos o guacamole. Devoramos o macarrão ao
Pesto. Detonamos a sobremesa.
Poderíamos ter aproveitado mais, só que era a hora do jornal nacional. Canal 13.
Subiram. Ouço perfeitamente as vozes da tv tomando o lugar da nossa conversa.
Este sentido involuntário que é a audição...
A gente fecha os olhos. A gente escolhe não tocar. A gente escolhe não provar.. mas não escolhe fechar os ouvidos. Desejo um aparelho que faça isso por mim.
Sigo na mesa, sentada.
Sigo no meu sentido de dialogar com a garrafa de vinho chileno (imagino que seja a
coisa mais próxima de um ser vivente). Um Cabernet Sauvignon bem razoável. Se fosse gente, eu pegava....
Sigo bebendo. Aproveito pra escrever. O cenário de fundo é o quintal. O cenário de fundo é o varal. O cenário deles sou eu.
Desce meu filho feito um saci com o pé machucado. São dezenove degraus do mezanino ao térreo. Ele tem dezenove anos. Um pra cada degrau. Ouço o ritmo desengonçado dos seus pulos. Eu, sem carapuça. Não posso me esconder.
Bebe água, pega uma maçã na fruteira e sobe novamente. Antes, me pergunta: ta tudo bem, mãe?
- Ta.
Na trilha sonora, Zileide Silva fala da lava jato. Eu procuro focar no texto que escrevo.
Eu dialogo com o texto ou ele me distrai? No momento em que eu decidir o ponto final, fico alheia.
O texto é a minha audiência, meu ibope. Meu datafolha.
O dia imenso me traz enormes reflexões.
Tem uma ninhada de gatos em cima do telhado. Bangu, o cachorro, não sabe que hoje as emendas da Lei de Diretrizes orçamentárias foi aprovada. Ele late para os gatos no telhado.
Meu vizinho também não sabe da pauta da câmara.
Eu ando pelo Mundo. Todo dia o trajeto é o seguinte: Glória, Matriz, maciel pinheiro, hospício, parque 13 de maio.
Vejo esgoto, feira, cheira cola. Vejo ambulante, loja fechando, sino de igreja trovejando. Continuo na mesa. Não importa se a cabeça faz revisão do dia...
A toalha da mesa parece uma colônia de scargots. Em preto e branco.
Doi na vista.
Ele volta e eu me sinto profundamente incomodada com a presença.
- já acabou o jornal?
- A parte que eu queria, já!
Acabando o chileno. E eu mais ébria.
O tempo passa por mim sentada na mesa.
A semana foi de lascar e hoje é o dia dos namorados.
Eu idealizo sim.
E sigo vivendo a vida possível.
Matamos o guacamole. Devoramos o macarrão ao
Pesto. Detonamos a sobremesa.
Poderíamos ter aproveitado mais, só que era a hora do jornal nacional. Canal 13.
Subiram. Ouço perfeitamente as vozes da tv tomando o lugar da nossa conversa.
Este sentido involuntário que é a audição...
A gente fecha os olhos. A gente escolhe não tocar. A gente escolhe não provar.. mas não escolhe fechar os ouvidos. Desejo um aparelho que faça isso por mim.
Sigo na mesa, sentada.
Sigo no meu sentido de dialogar com a garrafa de vinho chileno (imagino que seja a
coisa mais próxima de um ser vivente). Um Cabernet Sauvignon bem razoável. Se fosse gente, eu pegava....
Sigo bebendo. Aproveito pra escrever. O cenário de fundo é o quintal. O cenário de fundo é o varal. O cenário deles sou eu.
Desce meu filho feito um saci com o pé machucado. São dezenove degraus do mezanino ao térreo. Ele tem dezenove anos. Um pra cada degrau. Ouço o ritmo desengonçado dos seus pulos. Eu, sem carapuça. Não posso me esconder.
Bebe água, pega uma maçã na fruteira e sobe novamente. Antes, me pergunta: ta tudo bem, mãe?
- Ta.
Na trilha sonora, Zileide Silva fala da lava jato. Eu procuro focar no texto que escrevo.
Eu dialogo com o texto ou ele me distrai? No momento em que eu decidir o ponto final, fico alheia.
O texto é a minha audiência, meu ibope. Meu datafolha.
O dia imenso me traz enormes reflexões.
Tem uma ninhada de gatos em cima do telhado. Bangu, o cachorro, não sabe que hoje as emendas da Lei de Diretrizes orçamentárias foi aprovada. Ele late para os gatos no telhado.
Meu vizinho também não sabe da pauta da câmara.
Eu ando pelo Mundo. Todo dia o trajeto é o seguinte: Glória, Matriz, maciel pinheiro, hospício, parque 13 de maio.
Vejo esgoto, feira, cheira cola. Vejo ambulante, loja fechando, sino de igreja trovejando. Continuo na mesa. Não importa se a cabeça faz revisão do dia...
A toalha da mesa parece uma colônia de scargots. Em preto e branco.
Doi na vista.
Ele volta e eu me sinto profundamente incomodada com a presença.
- já acabou o jornal?
- A parte que eu queria, já!
Acabando o chileno. E eu mais ébria.
O tempo passa por mim sentada na mesa.
A semana foi de lascar e hoje é o dia dos namorados.
Eu idealizo sim.
E sigo vivendo a vida possível.
quarta-feira, 7 de junho de 2017
Quiprocó
Quero um copo de paz. Uma dose de ausência, uma pitada generosa de alívio.
Quero dias mais longos, com o sol mais morno, com a pele menos ardente.
Quero dois dedos de silêncio.
Quero menos noites insones.
Quero a vida longe da agenda eletrônica que me monitora.
Quando abro os olhos, a vida bate na cara.
Quando enxergo o mundo, dá vontade sair correndo.
Quando me deparo com as ruas, tomo uma lapada de realidade.
Pára tudo, quero descer.
Não quero mais brincar de pega, nem brincar de me esconder.
Quero ser café com leite desta vez.
Cessou.
O jogo sem fim...
sexta-feira, 19 de maio de 2017
eu, transparente.
eu ando muito clarice lispector.
uma clarice ambulante.
perambulando pelas ruas do recife mascate.
tudo em letra minúscula, porque nada é mais importante que nada.
nada é menos revelante que tudo.
eu ando me sentindo tanto!.
às vésperas dos 45 anos, me sinto mais menina do que nunca.
e mais mulher do que sempre.
como se retirasse todo o sumo de uma laranja e bebesse puro, sem água, com seus travos e bagos.
como se comesse a laranja inteira, sentindo suas sutis nuances.
clarice andou pelas ruas que eu ando.
clarice viu meu cenário, já foi minha vizinha, em tempos desencontrados.
ando pelas pedras e buracos da cidade, vejo nos rostos das pessoas um pouco da história.
a rua fala.
os carrinhos de fruta concentrados na praça maciel pinheiro dialogam com os moradores de rua que ali tomam banho.
eu passo transparente por eles.
outro dia estava justamente ali, cheia de sacolas nas mãos, quando um grupo de meninos impregnados de cola passaram por mim. eram uns 15, talvez. eles me atravessaram, passaram por mim e eu era quase uma transparência. eu não tive medo de perder nada. e eles nada quiseram de mim.
virei paisagem.
segunda-feira, 8 de maio de 2017
Maio.
O jasmim florido emprestou para a chuva suas pétalas.
Um instante nada. Aquele nada instante.
Um instante nada. Aquele nada instante.
Não há mais poesia do que no caos.
no abandono.
Mais poesia na flor que caiu,
Mais poesia na chuva que alagou.
no abandono.
Mais poesia na flor que caiu,
Mais poesia na chuva que alagou.
Mais poesia na tristeza, do que tristeza na poesia.
Poesia que passa displicente pelos olhos, que não consegue atingir a pele, que não chega a iluminar a face.
Maio, minha poesia inicial.
Para Katia Fugita.
terça-feira, 18 de abril de 2017
Desistência
Nunca desistir das pessoas, mas priorizar o que vale a pena.
Nunca desistir dos amores profundos, mas insistir em ser feliz.
Nunca desistir do que nos move, mas deixar voar o que não nos pertence.
sexta-feira, 24 de março de 2017
liquidando a Fatura
Cancelei o cartão de crédito.
Pra não viver de véspera, pra aprender a ser hoje o sempre.
Pra não depositar afeto na tarjeta de plástico,
Pra não dividir as pequenas alegrias em 10 vezes sem juros.
Cancelei o cartão de crédito.
Não tenho mais compras virtuais,
Negócios internacionais,
Sonhos impossíveis que o meu limite podia comprar.
Minha felicidade não paga mais juros,
Nem refinancio os momentos.
A minha anuidade sou eu.
A minha fatura é a minha escolha de vida.
A bandeira que eu levanto agora é a que eu acredito.
Viver com o que posso e sou não tem preço.
Pra não viver de véspera, pra aprender a ser hoje o sempre.
Pra não depositar afeto na tarjeta de plástico,
Pra não dividir as pequenas alegrias em 10 vezes sem juros.
Cancelei o cartão de crédito.
Não tenho mais compras virtuais,
Negócios internacionais,
Sonhos impossíveis que o meu limite podia comprar.
Minha felicidade não paga mais juros,
Nem refinancio os momentos.
A minha anuidade sou eu.
A minha fatura é a minha escolha de vida.
A bandeira que eu levanto agora é a que eu acredito.
Viver com o que posso e sou não tem preço.
quarta-feira, 15 de março de 2017
Sororidade
A alma anda pesada. Encharcada. Roupa que se lavou e esqueceu de espremer .
A alma pinga, pendurada num desconfortável varal.
Fica ali, suspensa, chorando até secar.
Tudo é o tempo. Tudo é o vento. Tudo é o sol. E o sereno.
Um murmúrio triste ressoa no peito.
Reclama, resmunga.
A lembrança da vida no vidro.
Ambiente estéril, álcool 70%, e o parto frio.
Um beijo final, cena de dor que a alma absorveu.
sábado, 4 de março de 2017
Maturi
Meu maturi quer cair do pé. E eu digo: cai não, maturi .Espera um pouco mais, aproveita a sombra, a seiva, a certeza do tronco.
Meu maturi quer cair do pé. E eu digo: vai chegar a hora, maturi. Vai chegar o tempo inevitável. E você cai doce, cai pronto.
Meu maturi quer cair do pé. Tá faltando uma peinha de nada....
E o maturi olha o imenso mundo azul, a imensa terra preta.
Cresce, pesa no galho, se enche de orgulho e ensaia o primeiro salto.
A seiva pinga do galho.
Rolou meu maturi.
Nem mais maturi....
Caiu na sombra da sua árvore.
Caiu inchado, caiu quase, quase pronto.
Não é mais maturi.
domingo, 19 de fevereiro de 2017
Fila de supermercado
Eu sempre achei esquisito este modo
contemporâneo e capitalista de comprar comida. Você chega em um supermercado. Pega
um carrinho. Coloca tudo o que deseja dentro do carrinho. Depois vai pra fila
do supermercado. Coloca tudo o que escolheu na esteira para pagar. Coloca tudo
dentro de uns sacos. Tudo no carrinho de novo. Depois, organiza na mala do
carro. Chega em casa, tira tudo dos sacos e arruma na geladeira e na despensa. Lava
as frutas, abre os saquinhos dos mantimentos e coloca nos vidros. E então
começa a consumir. Isso se antes, dentro do carro mesmo, não já tenha atacado
um pacote de biscoito....
Desse
processo meio burro, mas que até hoje repito - e olha que já faz uns 30 anos
que vou ao supermercado praticamente toda semana - tem uma etapa que eu adoro: a fila do
supermercado.
Feira
é coisa íntima. No carrinho estão as nossas atitudes, os nossos hábitos, os
nossos vícios. Estão alguns desejos secretos, quase todas as manias. Todos
rotulados, pesados, etiquetados, enlatados, prontos para serem consumidos. Você olha pro
carrinho alheio, tentando preservar o seu. Tem gente menos discreta que vai
logo perguntando:
- O que você faz com este cogumelo?
E presta?
Tem outros mais cordatos:
- Teria uma receita? Como se
prepara?
E então você discorre
detalhadamente sobre o “Mode d’emploi”, mesmo sabendo que nunca, jamais, em
tempo algum, aquela pessoa vai se deter meio minuto que seja sobre aquela
informação.
Muitas
vezes, destas orientações furtivas, saem conversas mais profundas. Sim,
profundas! Tem coisa melhor do que falar de intimidade com um desconhecido? Uma
pessoa que nunca mais vai te encontrar? Que nunca vai abrir tua geladeira?
Lembro
que, quando eu morava na França, fazia sempre as compras no FranPrix, um mercadinho bem popular.
Mais barato, muitos imigrantes, muita solidão. As filas eram gigantes. E ali,
numa terra estrangeira, a gente se soltava mais. As africanas falavam sobre
suas receitas, ingredientes que eu jamais cheguei a provar. As indianas
discorriam sobre as famílias imensas. Eu falava da minha saudade – palavra que
só eu sabia conjugar- e sobre o que sentia naquele país.
Vez por outra, uma olhava pro
carrinho da outra e perguntava:
- Este iogurte é bom? Seus filhos
gostam?
- Vale a pena comprar este salame?
Perguntas com respostas sempre
regadas a novas receitas – de vida e de panelas.
Em Brasília era curioso. Comprava muita coisa na mercearia japonesa. Rótulos que não sabia ler. Mudei meus hábitos. Acostumei a experimentar. Preferia comprar tudo a pé mesmo. Ali eu aprendi histórias de forasteiros. Receitas misturadas de todo o país. E tanta sacola!
Hoje moro na rua
da Glória, no centro do Recife. Uma rua que abriga o único centro islâmico da
capital, num momento em que muitos africanos estão chegando para tentar vida
nova. A rua que já foi o porto dos judeus. Que hoje é meu endereço afetivo.
Frequento o
mercadinho do bairro. Frequento o supermercado fino.
Compro coalho no
mercadinho e mostarda no mercado de grife.
Outro dia uma
africana vestida com aquelas vestes longas, com estampas tribais, me confidenciou, sussurrando com seu português quase incompreensível:
- Ontem joguei
meio quilo dessa carne fora, porque não sei fazer. Não tive coragem de colocar
na mesa, disse, aproveitando pra analisar meu carrinho.
Dei algumas orientações, truques,
algumas sugestões de acompanhamento e de preparo.
Ela
estava na minha frente, passou suas compras e eu fiquei. A caixa do
supermercado me disse:
- A gente que é daqui tem mesmo que
ajudar. E atalhou: - A senhora hoje não está tão bem não é?
Ali me senti acolhida. Passando o coalho e o limão, dei um
risinho e falei que toda araruta tem seu dia de mingau. Agradeci, digitei minha
senha do cartão. Saí até melhor.
Dessa
vez trouxe as compras na mão, nos saquinhos reforçados pelo empacotador que se ofereceu pra me acompanhar até em casa.
- Precisa não, ta tranquilo.
Mas, aí, já é outra história.....
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