terça-feira, 26 de novembro de 2019
uma saudade estranha
Às vezes eu sinto saudade de umas coisas estranhas...
Saudade de um vestido preto de linho, por exemplo. Tipo tubinho, na altura do joelho, comprado pela minha tia em um brechó nos arrabaldes de Paris e presenteado a mim. Ele, já usado, tinha uma fenda na altura da coxa esquerda, não muito profunda, e um babadinho no decote em V. O babadinho era de uma seda bem leve, preta e branca, lembrava o desenho de uma zebra. Não sei porque, mas hoje acordei e pensei neste vestido. Um presente... Não sei quando me desfiz dele. Não lembro de jeito nenhum porque passei pra frente. Era aquela peça coringa do guarda-roupa sabe?
Pois é... às vezes eu sinto saudade de coisas estranhas.
Saudade de vestido, de picolé de pitanga, de cheiro de melancia na praia ( tinha gente que dizia que era tubarão), de paisagem, de sensações.
Feito ontem, por exemplo... Um dia comum, uma segunda-feira plural. Rotina de segunda, almoço de segunda. E eu, no final do dia, decidi pagar umas contas. Abro o celular e começo a acionar o leitor do código de barras. Nada nostálgico. Na lista do que fazer, a transferência da mesada do filho mais velho. Como sempre, envio pra ele o comprovante. E ele me responde:
“É, mãe... esta é a última mesada que tu me dá.."
Oxe, como assim????
Eu ainda falei qualquer coisa do tipo: “É, filho, mas estarei sempre por aqui pra o que você precisar”. Mãe é mãe... nunca quer deixar de ser necessária.
Mas é verdade. Esta é a última mesada. E eu vou sentir saudade.
Deste vínculo, deste motivo, deste pretexto.
Uma saudade estranha. A mais estranha talvez das tantas que coleciono.
No próximo mês, ele será médico. Tenho a alegria de ter vivido lado a lado todas as etapas do curso. Desde o vestibular. Desde as primeiras provas, os plantões, o intercâmbio (quase morri de saudade), cada pequena etapa que consolidou este profissional comprometido que já vejo emergir dos olhos do meu menino.
E aí, diante da saudade da mesada, a saudade do vestido vira até uma saudade normal....
terça-feira, 19 de novembro de 2019
Entre a saudade e a união
Despedida na Rua da Saudade.
A paralela é a União.
Abraço na encruzilhada da vida,
Madrugada de testemunha.
Despedida que não cabe no abraço.
Que não se importa com o perdão.
A paralela é a União.
Abraço na encruzilhada da vida,
Madrugada de testemunha.
Despedida que não cabe no abraço.
Que não se importa com o perdão.
terça-feira, 15 de outubro de 2019
A pedra do teu anel
Vale pelo transe, vale pelo corpo que vira condutor de energia. Quanto maior é a corrente, maior é a experiência. Você vai rodando, de preferência, mãos dadas com quem não conhece. E a onda vai aumentando. Maré cheia de ritmo, imitando as ondas do mar. Somente quem é praieiro sente o cheiro da maresia onde quer que dance uma ciranda. Cuida que o pé esquerdo bata o tempo mais forte. Cuida que a tua mão suba e desça. HEYYYYYY.... Heyyyyyy
Eu danço ciranda desde os cinco anos. Era vizinha de dona Duda, aquela que aparecia nas propagandas das Casas José Araújo... uma música linda que dizia assim: “Vivemos nesta terra forte, neste sol do norte e luz de amor... sorrindo vamos para praia, de maiô, de saia, o verão chegou”....Eu parava tudo o que estava fazendo quando ouvia a música que vinha da TV. Raros os momentos de TV ligada na infância. A gente ligava o transformador primeiro. Depois, a TV demorava pra abrir a imagem. Mudar de canal era girando um botão que fazia um barulho danado: TEC,TEC,TEC......
Meados dos anos 1970... não tinha muito a se fazer em Pau Amarelo. A gente esperava o verão chegar pros veranistas animarem um pouco mais. Na safra, a gente colhia caju das casas que ainda não estavam ocupadas. Depois, secava e assava castanha numas latas de doce. Um bando de menino e menina acocorado em torno do fogareiro ao lado da casa do Praciano, no terreno baldio. Minhas blusas ficavam com a marca dos cajus. Era nódoa e não existia vanish.
De noite às vezes tinha ciranda lá em Dona Duda, aquela do comercial. De dia, Dona Duda vendia peixe. De noite, cantava ciranda. Gostava de entrar na roda em qualquer lugar, o povo soltava as mãos pra ampliar a roda, pra entrar mais gente. Era o ápice da comunhão. E rodava devagar... HEYYYYYY... Heyyyyy. Dançava menino, menina, homem, mulher. Pescador e comprador de peixe.
Eu tinha o maior orgulho de dizer que eu morava “na primeira rua à esquerda depois da ciranda de Dona Duda”. Da minha casa, quando ainda não existiam os prédios, a gente ouvia o toque da ciranda. Eu ficava num pé e noutro. Decorava as toadas. Quando eu chegava, aquele belisco de gente, Dona Duda vinha me abraçar. “A filha de seu Maurício mais Dona Maria”, ela dizia. E eu tratava de me meter logo na roda. Heyyyyyy... Heyyyyyy
De vez em quando, a ciranda virava coco de roda. Vixe Maria que delícia!!! O samba da beira do mar. Me ensinaram a imbigada, me ensinaram a segurar na saia e girar. Arrastando a chinela no chão pra dar um ar de faceirice. Era peixe de coco, cocada de sobremesa. Soprava o vento, descia o suor.
Talvez por isso ainda hoje das poucas coisas que não consigo resistir são o coco e a ciranda. Me meto na roda e deixo o chacoalhar me levar. O pé firme no chão e o tronco balança que nem coqueiro de um lado pro outro, nesse leva e traz.
Me pego sorrindo. Me pego cantando até as músicas que não conheço, de olhos fechados. A graça é essa. Se aprende assim também. Me pego na mão da menina de cinco anos.
Pois... este texto é um agradecimento. À Dona Duda, que animava as noites na beira do mar. À Lia, que me encantava quando ia às vezes visitar o Janga... E à Yane Mendes, que com sua lente captou meu momento de deleite, de desprendimento, de infância. O olhar da artista não me fotografou. Foi mais profundo: registrou o momento em que a menina saiu da toca e se revelou. Esta ciranda não é minha só. Ela é de todos nós. Ela é de todas nós!
Eu danço ciranda desde os cinco anos. Era vizinha de dona Duda, aquela que aparecia nas propagandas das Casas José Araújo... uma música linda que dizia assim: “Vivemos nesta terra forte, neste sol do norte e luz de amor... sorrindo vamos para praia, de maiô, de saia, o verão chegou”....Eu parava tudo o que estava fazendo quando ouvia a música que vinha da TV. Raros os momentos de TV ligada na infância. A gente ligava o transformador primeiro. Depois, a TV demorava pra abrir a imagem. Mudar de canal era girando um botão que fazia um barulho danado: TEC,TEC,TEC......
Meados dos anos 1970... não tinha muito a se fazer em Pau Amarelo. A gente esperava o verão chegar pros veranistas animarem um pouco mais. Na safra, a gente colhia caju das casas que ainda não estavam ocupadas. Depois, secava e assava castanha numas latas de doce. Um bando de menino e menina acocorado em torno do fogareiro ao lado da casa do Praciano, no terreno baldio. Minhas blusas ficavam com a marca dos cajus. Era nódoa e não existia vanish.
De noite às vezes tinha ciranda lá em Dona Duda, aquela do comercial. De dia, Dona Duda vendia peixe. De noite, cantava ciranda. Gostava de entrar na roda em qualquer lugar, o povo soltava as mãos pra ampliar a roda, pra entrar mais gente. Era o ápice da comunhão. E rodava devagar... HEYYYYYY... Heyyyyy. Dançava menino, menina, homem, mulher. Pescador e comprador de peixe.
Eu tinha o maior orgulho de dizer que eu morava “na primeira rua à esquerda depois da ciranda de Dona Duda”. Da minha casa, quando ainda não existiam os prédios, a gente ouvia o toque da ciranda. Eu ficava num pé e noutro. Decorava as toadas. Quando eu chegava, aquele belisco de gente, Dona Duda vinha me abraçar. “A filha de seu Maurício mais Dona Maria”, ela dizia. E eu tratava de me meter logo na roda. Heyyyyyy... Heyyyyyy
De vez em quando, a ciranda virava coco de roda. Vixe Maria que delícia!!! O samba da beira do mar. Me ensinaram a imbigada, me ensinaram a segurar na saia e girar. Arrastando a chinela no chão pra dar um ar de faceirice. Era peixe de coco, cocada de sobremesa. Soprava o vento, descia o suor.
Talvez por isso ainda hoje das poucas coisas que não consigo resistir são o coco e a ciranda. Me meto na roda e deixo o chacoalhar me levar. O pé firme no chão e o tronco balança que nem coqueiro de um lado pro outro, nesse leva e traz.
Me pego sorrindo. Me pego cantando até as músicas que não conheço, de olhos fechados. A graça é essa. Se aprende assim também. Me pego na mão da menina de cinco anos.
Pois... este texto é um agradecimento. À Dona Duda, que animava as noites na beira do mar. À Lia, que me encantava quando ia às vezes visitar o Janga... E à Yane Mendes, que com sua lente captou meu momento de deleite, de desprendimento, de infância. O olhar da artista não me fotografou. Foi mais profundo: registrou o momento em que a menina saiu da toca e se revelou. Esta ciranda não é minha só. Ela é de todos nós. Ela é de todas nós!
domingo, 1 de setembro de 2019
Tem uma palavra que tudo resume,
Tudo explica e preenche os espaços.
Uma palavra que ilustra e liga.
Religa.
Existem laços que são pra sempre. Que bom que são laços! Frágeis, passíveis de fazer e refazer.
Nosso sorriso comunga, os olhares entregam, a palavra fica quase na cara, escrita.
Palavra curta, pequena, simples.
Irmã.
Tudo explica e preenche os espaços.
Uma palavra que ilustra e liga.
Religa.
Existem laços que são pra sempre. Que bom que são laços! Frágeis, passíveis de fazer e refazer.
Nosso sorriso comunga, os olhares entregam, a palavra fica quase na cara, escrita.
Palavra curta, pequena, simples.
Irmã.
terça-feira, 20 de agosto de 2019
segunda-feira em duas versões
Acordei numa segunda-feira vazia.
Acordei mais tarde do que devia. Doía o corpo, uma morrinha
imensa...
Acordei com o pensamento azucrinando, mais que o habitual.
Cabeça funcionando e eu de olhos fechados ainda.
Com custo, levantei, dei umas voltas no apartamento a esmo,
sem saber direito o que tava fazendo.
No relógio, 7h12.
Preciso focar. Preciso acordar.
Coloquei comida pra Bangu.
Lavei a cafeteira italiana que ainda tinha o pó do café
passado ontem...
Tava fazendo o café quando o gás acabou. Olhei pro quadro na
parede da cozinha e ri...
a vida imitando a arte...
.................................
A segunda chegou com ares de sexta. Veio cansada, amuada. Lenta, remosa.
Abri o olho às 7h12, sem desejo.
O corpo pedia mais sono. Ressaca de uma farra que não aconteceu. Sensação de gripe.
Zanzei pelo apartamento ao acaso. Olhei a vista pro Capibaribe, tantos azuis! Vi as plantas, o quadro novo na parede.
Bangu reclamou e eu coloquei uma comidinha pra ele.
Pensei: um café vai bem. A cafeteira tinha ainda o pó da véspera.
Acendi o fogo, enquanto a cabeça dizia várias coisas a mim mesma. Uma profusão, que contrastava com minha lerdeza nada comum.
Quando virei as costas, ouvi o sopro seco que veio do fogão.
Olhei pro quadro na parede da cozinha e ri... a vida imitando a arte...
Era o prenúncio de um dia pra se esquecer.
Deu preguiça de trocar o bujão. Tomei café da manhã no bar da esquina.
Acabou o gás.
(A obra na parede é de Thiago West)
Abri o olho às 7h12, sem desejo.
O corpo pedia mais sono. Ressaca de uma farra que não aconteceu. Sensação de gripe.
Zanzei pelo apartamento ao acaso. Olhei a vista pro Capibaribe, tantos azuis! Vi as plantas, o quadro novo na parede.
Bangu reclamou e eu coloquei uma comidinha pra ele.
Pensei: um café vai bem. A cafeteira tinha ainda o pó da véspera.
Acendi o fogo, enquanto a cabeça dizia várias coisas a mim mesma. Uma profusão, que contrastava com minha lerdeza nada comum.
Quando virei as costas, ouvi o sopro seco que veio do fogão.
Olhei pro quadro na parede da cozinha e ri... a vida imitando a arte...
Era o prenúncio de um dia pra se esquecer.
Deu preguiça de trocar o bujão. Tomei café da manhã no bar da esquina.
Acabou o gás.
(A obra na parede é de Thiago West)
sexta-feira, 26 de julho de 2019
Distrato
Tem dias em que vida dói. Feito pé torcido. Feito dente furado ou que nem garganta inflamada.
Tem dores maiores. Mas nestes dias em que a vida dói que nem otite, é melhor respeitar. São as dores menores e mais insistentes. Carecem de cuidado. Colo. Dengo. Abraço.
Recomenda-se repouso pra alma. Pausa. Estou assim. Sentindo. Sentida.
Assinei um papel de desenlace. Como é que se finda um laço depois de assinar um destrato?
Laço que era amor, agora é reconhecido em cartório como passado.
Tem dias em que a vida dói muito.
Sem remédio.
Saber que o tempo é aliado pode ajudar.
Imaginar a dinâmica da vida, inspirar e expirar.
Tem dias em que dói viver. Estar viva é desafio. Seguir na estrada, tocar o barco, é aprendizagem.
A vida dói. Mas estou inteira.
A vida segue, e levo minhas dores na mochila.
Prefiro sentir.
Dói, vida.
Dói, que uma hora isso passa.
sábado, 20 de julho de 2019
a viagem pra dentro de mim
Primeiro dia. Quase 12 horas de vôo e conexão. Eu ainda não vi Paris. Cheguei, desci do avião e me coloquei na fila imensa da imigração. Aquela fila que nos deixa pequenos. O povo nervoso, reclamado da demora... E é engraçado que meu olhar estrangeiro se sente muito a vontade. Eu enfrentei filas em bobigny, muito mais pesado que a imigração do aeroporto. Já vivi por aqui o tempo suficiente pra entender que as inflexões da língua não são nada face ao que podem ser as pessoas. Os franceses fecham a cara, mas sempre dão uma força. Carimbo no passaporte, mala recuperada na mão, corri pra pegar o RER, aquele trem que me levará a Paris. Eita! Só tenho notas de cem euros. Fui a uma lanchonete, meio supermercado, comprei um biscoito, um suco de laranja (segunda refeição do dia, e aqui já são 18h30) e, pra tapear, uns lencinhos demaquilantes. Meu esforço rendeu sete euros. Eu tinha 100... A caixa foi très gentil. Eu ensaiei meu melhor merci beaucoup.
No caixa eletrônico pra comprar o bilhete do trem, não aceitava cédulas. E eu lembrei que tinha habilitado meu cartão de crédito. Aleluia!!!!
Entrei no RER e na segunda estação sobe um monte de gente. Era o parque de exposições. E eu me faço de morta pra ouvir a conversa alheia. Nem precisa. Uma senhora que chega depois e senta ao meu.lado começa a conversar. Perdeu a chave da casa do filho, tá agoniada. Vai descer na gard Du nord. Eu sigo até a cité universitaire. Atenta, saio na estação. Pego um trainnway, na direção contrária. Desço, atravesso, espero o próximo. Deu certo. A casa do meu amigo que me recebeu é ao lado. Eita vida boa. Seguimos com cidra e crepe bretã. De repente o francês nordestino sai da minha boca. Tudo numa paz, parece que eu sempre estive aqui. Falo e nem tenho medo de errar. O importante é trocar ideia. O motorista do ônibus pergunta como posso estar flanando em Paris enquanto o Brasil joga. E eu: contra quem mesmo?? En français!!!
Agora, Paris, eu cheguei!!!!
Segundo dia. Eu quase não dormi. De excitação, de alegria, de fuso horário... Não sei bem.
Acordei às 7h e tentei, juro, conciliar mais uma horinha de descanso... Mas Paris estava lá fora. Vesti uma roupinha e fui conhecer a vizinhança. Comprei tomate, queijo, suco de laranja e uma baguete. Voltei pra casa, comi aquela delícia de simplicidade.
Vesti uma roupinha (outra, claro!) e rua! Saí, andei até o metrô e entrei no trem. Nem ideia pra onde iria. Linha quatro do metrô. E ver os nomes das estações já foi presente e lembrança. Uma francesa senta ao meu lado e tenta entabular uma conversa sobre política. Até aqui, madame??? Je suis bresilienne...
Decidi sair na estação mais turística de todas: cité. Subi e vi a história na minha cara. Andei andei andei sem destino e sem cansaço. Viva a Notre Dame, viva a rua com sol! Faz 20 graus. Na sombra, pra mim, é frio.
Andando, cheguei no beaubourg, o centro Pompidou. Tanta memória!!! Parei ali por perto pra comer qualquer coisa. Tartare e fritas. De sobremesa, Tarte au pommes... Ai ai ai.
Na verdade, estarrei. Pedi une bierre à lá pression. Me coloquei numa mesinha de frente pra rua e fiquei ali quarando no sol... No final, café. E o gosto da vida explodindo a cada gole. Dali, saí "au hasard". Esbarrei na eglise de Saint eustaquie. Linda, majestosa. Verdade que quando entrei o primeiro pensamento foi: "igreja gigante, a serviço do patriarcado". Mais uma vez, afastei o pensamento. Exercício de ser flaneur. Não quero falar de política aqui... que desafio! Seguindo os toques do meu coração, explodi na praça do Louvre. Jardim des tullieries... sans paroles... Estupefata. A torre se insinuando no horizonte. Segui até a praça da ópera. Antes, passei por Saint Honoré. Entrei numa e noutra loja. Neste momento escrevo sentada num café, Boulevard des italiens. De vez em quando é preciso recobrar as energias ♥️
Do centro histórico, parti no metrô 14 para a área da biblioteca nacional. Que surpresa linda! Os antigos frigoríficos de Paris foram ocupados por artistas. Lembrei do matadouro de Peixinhos e da Fábrica Tacaruna... Eu e estai mnha mania por militância... tanta vida nesta ocupação de arte! Dezenas de estúdios e ateliês. Hj tem jazz. Je suis la!!!! Mais tarde vai ter um jantar na casa de amigos. Voilà!
Terceiro dia.
Eu não ajustei o relógio do celular. Fico fazendo sempre as contas. Aqui são cinco horas a mais. E eu ainda me sinto meio bugada com o fuso horário.
Acordei cedinho, 7h (no relógio marcava 2h da madruga). Ontem peguei o metrô mais de meia noite, depois de um jantar bem francês da casa de uns amigos. No menu: várias pastinhas (guacamole, húmos, pastinha de tomate, uns grãos, pão da melhor qualidade, salada, uma tortilha). Tudo frio e vegetariano, delícia de verão.
Me acabei nos queijos. Uma coisa deliciosa! Um deles é servido com cuminho. Isso mesmo! Você povilha por cima na hora de comer. Provei tudo. Tamos aqui pra isso. Precisa nem dizer que tinha vinho né?
Pois bem. Quando me dei conta, já eram 23h50 (hora daqui). E lá se vai a aventura de voltar pra casa. A linha do metrô que me deixa pertinho estava interrompida, fazendo umas reformas. Dei com a cara na grade. Felizmente, um aplicativo me orientou e eu dei a volta em Paris e peguei o dernière trainnway… voilà. Era mais de uma da manhã quando cheguei em casa. Sempre dá aquele medinho de estar em algum lugar perigoso…Herança du Brésil.
Hoje acordei e parti para a Gare de Montparnasse. Gente! Gente! Gente! Um mar de gente. Engarrafamento de mala…
Eu tinha um bilhete de trem comprado, mas não o tinha fisicamente. Vou pra Bretanha.
Lá na estação, depois de muito "bonjour, monsieur, est ce que vous pouvez m'aider?", Descobri o bureau da SNCF, (como se fosse RFFSA do Brasil) . A diferença é que a daqui funciona très bien. Trem pra todo lugar. Tinha uma fila gigante e eu tinha uma hora pra pegar o bilhete e viajar. Em 10 minutos fui atendida, bilhete na mão e sequer pediram meu passaporte pra confirmar se eu sou eu mesma.
Deu tempo de comer um "pain au chocolat avec un café, s'il vous plaît".
Tô aqui escrevendo sentada no TVG. Pra quem não sabe, é "Train à Grande Vitesse", ou seja: trem bala.
Vou lá pro colo da minha mãe francesa, Françoise. Ela me espera numa cidade que eu nunca ouvi falar: Guingamp.
Guingamp é uma comuna francesa na região administrativa da Bretanha, no departamento Côtes-d'Armor. Pesquisei isso na internet, quando estava ainda no trem. Na vida real, é uma cidade do interior da França com uma igreja, hôtel de ville, um parque e os resquícios de uma muralha. Très mignon…
Almoçamos num restaurante à beira de um lago. Salada com queijo de cabra, que eu amo.
Ela já me recebeu cheia de planos. De lá, fomos direto pra uma cidade do lado que tem um parque de exposições com Santos da cultura celta. Todos gigantes. Todos em granito. Cada um feito por um escultor diferente. Achei meio estranho. Achei bonito também. Era uma fusão de Nova Jerusalém, bonecos gigantes de Olinda… melhor não tentar explicar. O local é de uma beleza natural incrível. Valeu ver. Françoise sempre saca histórias sobre o passado, sobre a cultura daquele povo. E eu embarco junto.
Depois seguimos para um passeio na floresta. Isso mesmo… perto de Poullaouen, onde ela mora. Andamos, conversamos nas trilhas. Molhei os meus pés no riacho. Energia pura. Sentamos numa.pedra e ali ficamos conversando. O tempo era o murmurar da água, o zumbido das abelhas, as crianças que brincavam ali perto. Já eram umas sete e meia da noite e o sol de verão europeu ainda estava alto. Veio "entardecer" umas 22h30 (hora daqui).
Meu dia começou na loucura da estação, subindo e descendo escadas enormes com uma mala, no stress de Paris. De repente, estava na paz de um bosque. Aquele dia imenso, cheio de contrastes. Françamente!
Quarto dia.
Não é sobre estar na Europa, na França ou na Bretanha. Não é sobre carimbar o passaporte ou contabilizar quantos lugares você já foi.
É sobre ter prazer. Sentir outros sabores, cheirar outros ares e atravessar oceanos por um abraço. É sobre acordar de manhã e partilhar o chá, pegar o carro e andar até Finisterre (a ponta da França, na Bretanha), somente pra sentar na areia, tomar um banho no mar gelado e contemplar. É sobre se maravilhar com o almoço que levamos pra dividir na beira da praia. Aliás, uma salada de couscos de sarassin com legumes, pão comprado na boulangerie que você ama, pasta de azeitona. Sarassin é bem típico aqui. O Google explica que "é uma planta da família Polygonaceae. Os grãos são comestíveis e parecem-se aos grãos dos cereais, sendo ricos em Rutina, mas são, na verdade, sementes de um fruto aparentado com o ruibarbo e as azedas". Só sei que é delicioso. E quase tudo aqui leva esta farinha sem glúten.
É sobre sair da praia e visitar catedrais, vilas, parar num café e jogar conversa fora. Sobre pedir outro café e falar mais. Parar na estrada somente pra ver uma flor que abriu. Sobre sentar na beira do lago e ficar em silêncio vendo as andorinhas que mergulham e galhofam.
Hoje nós rodamos, viu!!! Françoise me levou a lugares lindos. Todos na Bretanha. Cidades que parecem cenário de filme. Os nomes são esquisitos: Roscoff, Bretch, Locquénolé. Todos resquícios de uma língua que, apesar de não ser a oficial, rege a cultura. É sobre subir montanhas para ver aquela vista maravilhosa que emociona. E entrar numa doceria e dividir aquele bolinho que é típico da cidade.
Sim, a Bretanha encanta. O mar é azul, o sol do verão brilha com cores lindas. As construções medievais são imponentes. A comida tem sabor bem particular. Cada vez que a gente vira a esquina tem uma beleza a mais.
Mas o dia de hoje foi sensorial. Eu tirei muitas fotos porque sabia que as palavras seriam alegorias.
É sobre estar no lugar certo, no dia certo, na hora exata.
Quinto dia.
Bonjour!!! A casa de Françoise é de 1850. Paredes de pedra, vigas imensas de madeira, telhado de ardósia, chaminé e pé direito baixo. Uma casa típica da Bretanha. Eu durmo no quarto perto do telhado e acordo com os passarinhos cantando. Aqui gente para numa casa e noutra, toma um café, um copo de alguma bebida, fala sobre a vida e sobre o verão. De repente, alguém oferece uma salada de frutas, com morango, damasco, pêssego, pera, maçã, cereja... só fruta da estação! Hoje não vou falar de roteiros turísticos. Eu visitei cidades e vilas e lagos. Mas hoje o tom é o patrimônio imaterial.
Eu me revelo apaixonada pelo pain au chocolat de sarrasin, aquela farinha escura que tem um sabor fora de qualquer coisa que eu possa escrever. Tem o doce e o amargo na medida certa. O chocolate é intenso, protagonista. A manteiga bretã é salgadinha, quando a gente morde, sente o contraste. Heureusement, eu vou embora da Bretanha. Hoje fui na boulangerie e comprei logo dois 😍. Minha extravagância. Meu amor pelos sabores e pelo mundo. Os nomes dos lugares continuam sendo quebra-cabeças. Hoje "conheci" árvores antiqüíssimas. Uma delas, um carvalho plantado em 1520, quando da morte de Catarina de Médici. Outras duas datam da revolução, em 1789. São monumentos vivos. No almoço, comi alcachofras colhidas bem pertinho. O povo daqui ama. Eu também, desde hoje 😉 Delícia, servidas com azeite e limão. Cozinha simples. ♥️ Aqui na Bretanha o tempo corre leve. Faz 23 graus. Gostoso pra passear na feira livre à beira do lago de Huelgoat, que em bretão quer dizer águas altas. Minhas deusas!!! Eu me encanto com tantas possibilidades de embutidos e queijos. E marinadas de azeitonas, e grãos...feira em qualquer lugar do mundo é uma delícia! São 15h30 e o sol tá alto!!!! Estendi um cobertor embaixo de uma macieira e abri um livro. Ao lado, morangos comprados do produtor. Tempo passando que nem água leve do riacho. Jantamos num café dentro da floresta. Uma mesa de mulheres de várias origens. A força que une as mulheres em qualquer lugar. Brindamos com vinho branco da Borgonha. Quelle merveille! Meu último dia em Poullaouen. A bientôt!
Sexto dia.
Rennes é uma cidade divisa da Bretanha. Foi quase que totalmente devastada na segunda guerra. Dommage… o que ficou de prédio histórico está preservado. São prédios altos, feitos com uma pedra vermelha irregular. Aqui a língua original é o galês, uma mistura de vários idiomas com o francês. Chiclete com banana. Uma coisa assim.
Cheguei hoje aqui com Françoise pra visitar Catherine. Quando eu morei em Paris, há 17 anos, foi Catherine quem me levou ao marché, me mostrou queijos e frutas, me ensinou a cozinhar ratatouille. Faz uns 14 anos que nos vimos a última vez.
Chegamos na cidade na hora do almoço. Comemos salada, grão de bico, queijo de cabra e uma cerveja bretã. Ah, e pão de sarrasin, claro!
Depois, fomos passear pela cidade. Linda. Forte. Uma mistura entre o antigo e o novo. Entre a história e o futuro. O melhor do passeio é a conversa. A gente falou de.muita coisa. A gente se olha e se reconhece. Isso é amizade né?
No centro mesmo tomamos outra biere bretã... Tô ficando mal acostumada! Passamos pelo parque. Maravilha. Fizemos tudo a pé. Ainda paramos numa lojinha pra comprar farinha e sêmola de sarrasin pra eu levar na mala. Ninguém vai me aguentar em Recife com estas receitas novas!
O calor começou a ir embora e no relógio já eram 20h. Danosse!!! Voltamos pra casa e a refeição foi uma salada de legumes com peixe defumado e… ratatouille!!! Depois, queijo de cabra. Vou sair daqui amando isso. Vinho pra acompanhar.
Depois do jantar eu e Catherine fomos fazer um passeio. Andamos numa hora e meia na beira do canal falando da vida, trocando idéias… meu francês sofrido não acompanha às vezes o que eu quero falar. Mas a gente vai driblando, aprendendo, ensinando. A lua estava brilhante, o céu era de um azul claro inesquecível. Tanta gente brindando e tocando instrumentos no caminho… uma cidade que vive e deixa as pessoas viverem. Recife, meu velho…sonhei com você. Como poderia ser lindo o cais da aurora iluminado de gente. Como seria a gente poder andar assim até a meia noite?
O papo fluiu até a volta, não houve nem pausa. Vida, sonhos… momento tão único que, se eu pudesse, colocaria num relicário.
A vida me dá cada presente!
Sétimo dia.
Eu morei na França. Falo francês. Conheço pas mal Paris. Posso ser embaixadora. De quebra, já tô aqui. Economiza a passagem… o país tá precisando…. Presidente, olha a oportunidade!!!!
Antes que chegue o convite, prefiro passear. Hoje foi um dia cheio. De lindeza acordar em Rennes, pegar a estrada e chegar em Chartres. A catedral dos vitrais, terra natal de Françoise. Algumas visitas e pegamos o trem pra Paris. Fomos diretamente pro hospital. Endereço: 74, Denfert Rochereau. Ninguém estava doente não… era apenas um hospital ocupado por artistas. Pensei na hora na Tamarineira. Muitos artistas. Bazares. Música, cerveja. Comida. Pão artesanal. Bijouterias. Lá encontramos Karen, a irmã do coração. Família completa, enfim!
Paris ao sol nos faz pensar que o tempo não passa. Da vontade de lagartear, rir, jogar conversa fora. Sim, a vida passa assim.
Mas não é comme ça. No metrô tem muita gente pedindo ajuda. Pobreza batendo na cara da gente. Contraste e desigualdade. Hoje no trem de Chartres vi três pessoas serem paradas porque não tinham dinheiro pro bilhete. São as mazelas das metrópoles que se repetem, que nos doem. Que nos marcam.
Olho todas aquelas pessoas esperando o trem, que vai lotado, e penso que há uma dor e um sonho pelo menos em cada uma.
Sigo no meu. Busco ser honesta comigo mesma.
Estou de férias, vivendo o sonho de reencontrar pessoas e lugares que amo. Fazia 14 anos que eu não vinha aqui. Por isso, tudo é tão bonito.
Saímos da ocupação, batizada de "Les grands voisins" , que quer dizer "os grandes vizinhos". Uma ideia de cooperação e economia criativa de dar gosto! Seguimos pra casa de Karen, no la Villette. Conheço bem o Cartier. Comprei coisitas deliciosas como queijo de cabra, presunto cru, iogurte de brebi… e harissa, aquela pimenta em pasta que eu amo!!!
Estamos comendo pistache e tomando chá. As janelas abertas deixam entrar o vento do verão. O sol começa a dourar. Hoje de noite tem o baile da revolução. Uma festa na rua. Amanhã é 14 de julho, dia de comemorar a revolução francesa de 1789. A festa é na bastilha, mas acho que não vou… a não ser que saia minha nomeação de embaixadora. Aí será agenda oficial. Voilà.
Oitavo dia.
Eu tenho mania de guardar ticket de metrô, entrada de museu, bilhete de trem. Guardo as flores colhidas na estrada… "Les fleurs qu'on retrouve dans un livre, Dont le parfum vous enivre, Se sont envolés pourquoi?" Viajar é pra dentro e pra fora da gente. Amo os álbuns que têm mais que fotografias. Iniciamos nossa promenade pelo grand Palais. Jardins lindos! Eu, Karen e Françoise. Um passeio em família.
Agora já são 23h. E eu acabei de sair de um restaurante chinois em Belleville, daqueles de filme americano. Tapete vermelho em todo lugar, tudo dourado. Uma escada monumental na entrada. Fui jantar com um amigo querido que não via há 8 anos. Antes, de tardinha, estava num restaurante tailandês, beliscando e tomando cerveja. Deixa a vida me levar. Depois dos jardins do Grand Palais, nos avoramos au hasard: Galerie Vivianne, Rue montorgueil, chepaquoi! Domingo de sol em Paris, outra lógica. No beaubourg, o Pompidou, duas exposições estavam em cartaz. Fazer o quê? Vimos as duas.😄 A primeira, sobre Dora Maar. E provavelmente você vai me perguntar: aquela que foi casada com Picasso? Sim, ela mesma. Artista incrível: fotógrafa, pintora, gravadora. Engajada social e politicamente. Eu fiquei encantada. Ao lado, uma exposição sobre a pré-história e a sua influência na produção artística atual. Um percurso incrivelmente lindo. Inteligente e sensivel.
A gente tinha comido uma salada no almoço. Saí das exposições e corri pra comprar um café com croissant, que eu não sou obrigada. Karen e Françoise continuaram lá vendo outras exposições. Eu sentei na frente do Pompidou, no chão mesmo, fazendo nada.
Eu e a torcida do santinha né? Porque tava lotado o lugar. Gente de todo jeito. Coisa linda ocupar a praça assim…
Aqui é quase meia noite. E é 14 de julho, festa nacional. E a lua está linda. Tem show pirotécnico pra tudo quanto é lado.
Termino meu dia com uma frase na cabeça, que li no banco do jardim: "faites dês betises, mais faites-les avec enthousiasme". Frase da escritora francesa Collette, que quer dizer mais ou menos assim: você pode até fazer besteira, cometer erros. Mas faça com entusiasmo. Simbora! Amanhã tem mais.
Nono dia. E eu vos escrevo sentada na cadeira reclinável no jardim de Luxemburgo. No coração do 6eme. Saímos de casa perto das 11h. Eu e Karen ficamos fofocando até umas duas da manhã. Sim, o melhor da viagem são as pessoas.
Quando entramos na estação do metrô, correntin carriou, lembrei que já uns 10 anos eu estava naquela mesma plataforma, era inverno e um senhor muito formal, com um casaco longo, se aproximou de mim e falou, solene: madame?? A madame aqui olhou e ele, numa cena clássica de filme, abriu o casaco. Estava completamente nu. Minha reação imediata foi rir. Ri muito. Comecei a falar em português e ele, constrangido, colocou a violinha dele no saco e partiu. Nem tudo são flores no metrô de Paris. Ontem mesmo, depois de jantar com um amigo, peguei o metrô. E então… uma mulher em uma das estações acionou o alarme do nosso vagão e saiu correndo. Não era nada. Eu não entendi. Mas percebi a tensão no ar.
A esta altura, minha cabeça entre as lembranças e o presente, chegamos à estação Odeon. Outro tour maravilhoso pelas ruas. Nosso ponto de parada foi Saint Placide. Pertinho do théâtre du vieux colombier, onde fiz um estágio. Eita que bom! O almoço de hoje foi comida coreana.
Hoje é segunda e tem um monte de museus fechados. Felizmente um dos meus preferidos, o da idade média, estava recém restaurado e aberto. Já fui lá umas três vezes. A visita sempre vale. Do restaurante foi uma caminhada de meia hora, cruzando o parque Luxemburgo (colorido de flores e de gente), passamos pela Sorbonne e… voilà, le musée! Antes, tomamos um petit café.
O museu é uma antiga terma romana, lugar onde as pessoas iam pra tomar banho. Toda vez que entro lá me emociono. Tem muita civilização ali.
Ver exposição cansa!! Melhor voltar pro parque e botar a perna pra cima. Sol, Françoise lendo, Karen desenhando, eu escrevendo este texto que vcs estão lendo.
Acabou o dia? De jeito nenhum! Andamos até a ponte neuf, pegamos o metrô e descemos em Stalingrad.
Dez passos depois estávamos na beira do canal Saint Martin. Um monte de gente curtindo o verão. Comemos comida da Guiana Francesa. Mais 20 minutos de caminhada e chegamos em casa. Tanta coisa pra contar. Mas é melhor sentir. 💜
Décimo dia. Amanhã pego o avião de volta pra casa. O ritmo vai mudando, tá acabando… Começo a sentir saudade dos meus meninos, saudade da minha casa, de Bangu. E vou ficar com saudade daqui. "Quem tem saudade não está sozinho", cantou Capiba. Este lugar aqui me inspira. Sou de onde tem e tenho afeto.
Hoje acordamos cedinho. Tinha marché em Saint Denis, a cidade onde morei. É a cidade onde estão enterrados todos os reis da França, numa catedral bem linda. Tem uma comunidade árabe e indiana grande e uma feira maravilhosa. O metrô estava LOTADO. Entramos e, no meio do percurso, pediram pra evacuar que tinha acontecido um problema técnico. Ainda pensei em pegar um ônibus. Mas desisti. Fica pra próxima vez.
Além de andar bem muito por aí, vendo passagens incríveis, ruas cheias de poesia, revendo o Jardin des tuileries, passando pela ópera e Odeon, atravessando a pont des arts quase sem os cadeados dos apaixonados… sentindo a cidade que pulsa. Paramos no museu da moeda. Decidimos entrar. Eu fico pasma como tudo tem história e respeito à cultura. Ao final da visita, cada pessoa imprime sua própria medalha. Curioso!
De lá corremos pra fundação Cartier. Lá tem uma exposição sobre árvores. Isso mesmo!!! Em torno do jardim diversas árvores imensas do mundo todo. Lá dentro, como florestas inspiram artistas. Claro que no percurso entre uma expo e outra comi une tartelette au deux citrons na Paul. E ainda levei na mochila um pain au chocolat. Perdoem meu exagero. É o derradeiro passeio. De manhã a já gente tinha comprado cerejas. Andamos no nosso promenade com o saquinho de papel madeira na mão, degustando bem devagar aquela delícia. Eu entendo hoje quando os estrangeiros piram com caju, maracujá e jaca. Viajar também é se irmanar com os sabores alheios.
Pronto. Depois da expo das árvores a gente voltou pra casa. Exaustas. Nós estamos juntinhas pra curtir este último dia.
Amanhã tenho até umas 12h pra dar uma voltinha básica. Num tenho ideia do que vou fazer. Mas vai ser lindo. ♥️
Derradeiro dia.
Melhor seguir a lógica temporal. Dormi um sono ansioso. Abri o olho e pensei: último dia!!! 7h30, tomamos café da manhã e seguimos.pra região do Le Halle, ali pertinho do beaubourg. Me sentia em suspensão. Sem querer me despedir de Françoise, que tanto colo me deu neste período.
Eu queria comprar uma malinha de mão e alguns presentinhos. Estes dias foram intensos de afeto, mas não comprei quase nada pra ninguém. Foi uma viagem de sensações. Nestes dias todos olhamos vitrines, galerias…de animais empalhados a jóias preciosas. Vi de luminárias incriveis a livros antigos. Mas não estava na energia de comprar nada.
Et Bon, voilà, quando chegamos no Le Halle, umas 9h, as lojas estavam fechadas. Fomos no Le Pain Cotidien, um bistrô que dia desses almoçamos uma saladinha (a minha chèvre au chaude estava delícia). Pedimos dois cafés e um croissant aux amandes. Sentamos numa mesa ao sol e ficamos ali. Eu pedia pro tempo passar com cuidado por mim, pra eu me despedir. Lembrei de Caetano: "tempo,tempo, tempo, tempo, faz um acordo comigo"… Dias iluminados estes, que passei com minha família francesa.
Uma hora depois nos levantamos e compramos as coisas: mala, uns imãs de geladeira com as placas de ruas e praças de Paris, as caixinhas de música (desta vez, la vie em rose, je ne regrette rien e la chanson douce), além de outras coisitas pequeninas.
Caminhamos mais um pouco, passamos pela Notre Dame e Saint Michel. Dia lindo!!!! Fiz poucas fotos. Queria registrar na máquina fotográfica da retina. Caminhamos devagar. Finalmente pegamos o metrô e descemos em Porte d'Orleans. Mais uns 10 minutos a pé e chegamos na casa de Albin, aquele meu amigo que me recebeu logo no primeiro dia. A casa dele foi minha base.
Arrumei as malas. Tudo certinho. Eu tinha 16 quilos. Posso usar até 23. Tava com medo porque comprei um monte de biscoitos e queijinhos pros meninos, lembrando do tempo que moramos aqui. Almoçamos uma salada com baguette, queijo, presunto, mostarda Dijon, cerejas e pêssego. Françoise pegou ainda a baguette que sobrou e colocou na minha mala. Eu chorei naquele momento. Era ela na minha mala. ♥️
A gente espichando o tempo…
Depois do almoço descemos e tomamos um café no bar da frente. "Construtor de destinos, tambor de todos os ritmos".
Não tinha mais jeito. Era hora de seguir.
Ela fez questão de ir comigo até o aeroporto. Um carinho a mais. Então, pegamos o metrô Porte d'Orleans, depois o RER B. Saímos cedo, graças! O trem parou numa estação e não saía mais… putzzzzzzzzz 🙄🙄 meia hora esperando.
Gente que só com malas e um aperreio danado. Depois eu soube que era uma mala abandonada na estação La Couveuve que provocou o atraso. Tem muita tensão no ar. Chamaram a segurança especializada em bombas. Quando finalmente liberaram o tráfego, chegamos no aeroporto sem maiores tropeços. Fiz o check in e sentamos lado a lado em uma daquelas cadeiras que ficam nos pátios. Uma conversa mais tranquila, com mais reticências. Segurei o choro. Fiz um percurso mental destes 10 dias. Cada momento lindo! Molhar os pés no riacho da floresta da Bretanha, comer sarrassin, tomar banho no mar gelado de Roscoff, cada café por acaso… ir a Rennes, passear por Paris, rir com Karen, jantar com Jasmin, encontrar Sthéphane, visitar museus, exposições, deitar na grama dos parques, comer queijo de cabra e tomate, mais um café, une bierre si vous plaît…
Embarquei, mas antes nos demos um abraço longo e sereno. E não deu pra controlar a emoção. Françoise me acompanhou com os olhos enquanto eu subia a esteira rolante… até onde a vista alcançou. "Coisa de mãe", ela me disse.
Obrigada, vida. Os afetos nos curam. Os encontros nos fortalecem. Voltar é o caminho, mas trago uma bagagem sem peso que é inestimável no valor.
quinta-feira, 20 de junho de 2019
Rebento
Acordou em dúvida se aquele beijo, há trinta anos atrás, tinha realmente acontecido. Se aquela música tinha tocado, se ele tinha chamado ela pra dançar. E se tivesse? O que mudaria? Qual a força da realidade? Ou, por outro lado, qual a herança que carregamos pelo não acontecido? Pelo que ficou pairando por décadas, permeando casamentos, nascimentos, mortes, separações? A dúvida, ao contrário do que se possa imaginar, não corroía a sua alma. Era pura especulação. Era ela brincando de ser Deusa. Como quem num jogo de tabuleiro planeja a próxima jogada, avalia possíveis caminhos. Ela acordou, passou um tempo maior que o normal na cama, aguçando os sentidos. Tempo pra espreguiçar e acordar uma a uma as células. Tempo de acalentar o pensamento. Tempo pra revirar na mente o dia anterior, dar o play nos momentos que viveu. Tempo....
Todo dia levanta de ótimo humor, cedinho, quase com o sol. Todo dia se rende ao café na mesa com parcimônia. Tudo bem lindo, mesmo que esteja sozinha. Comunga consigo da refeição. Mas hoje não. Hoje ela se deixou levar pela morosidade do alvorecer. Ainda entre os lençóis, decidiu escrever pra ele.
"Meu alvorecer é leve. Bruma que voa ao apelo da brisa mais displicente. O corpo, este registro geral, ainda traz indícios do que fomos. E não mais seremos. E eu sigo leve, grata pelo carimbo das tuas digitais que jaz na minha pele. E eu sigo alegre, pela capacidade de amar e de olhar o mundo quando tudo é possibilidade, e cor, e luz. E pensando assim, somos também tudo isso. Eu sou a flor que abriu mansa. O regozijo que me traz um balanço de rede, balanço de vida, vida afora. Muitas vezes escreverei a palavra VIDA, porque é ela quem vem batendo à minha porta insistentemente, me chamando para bailar, me inquirindo sobre o cadeado que pus na maçaneta. É esta energia vital que não me deixa, não me leva nem me traz. Existe em mim. E quando em teus braços me envolvi, foi a mim mesma que abracei. Foi a minha VIDA que sentiu tanto o prazer de ser, e estar, e exultar, e gozar. E quando em teus braços finalmente vejo a luz, é a minha VIDA que entrego ao mundo, a partir da fusão de nós mesmos. E quando me rendo à fábula de nós dois, é como se encenasse meu futuro. É como se fizesse uma oração ao tempo que virá que sim, seja de amor. Neste ritual de volta ao mundo em que me encerro, já me encontro. Não mais estrangeira de mim nem muito menos longe dos meus. É libertador ver você despojar-se de nós. O seu despertar. A sua persona voltando à vida real. A voz, o corpo, a mente, todos em harmonia e em alinhamento. Poesia concreta. Me percebi espectadora do seu movimento. Um beijo na testa antes de me deixar e se entregar à chuva na beira do rio. Um gesto tão amoroso quanto amigo. A certeza de que o laço não se esvai, mas nossas escolhas ali estavam traçadas. A chuva lavou a alma de qualquer culpa, porque não existe penalidade no sonho.
Dentro de mim, outra revolução se aproxima. Outra concepção de amor. Outra razão de VIDA. Aconchegada na memória do suor, aninhada no peito do êxtase. Para o tempo, este elo marcado na pele, esta energia fundida no amor da tarde que se despede. Vejo a VIDA pela minha lente poética. Ela reluz".
Escreveu, mas não enviou. Fechou o computador esperando que o texto apure. Escrever é sempre uma maneira de temperar os sentimentos. Tem exercitado escrever cartas que jamais serão lidas. Que jamais foram enviadas. Cartas que não terão resposta.
Cartas destinadas a analfabetos, incapazes de ler pessoas.
Nem sempre as respostas chegam. Elas estão em nós. Já habitavam aqui. No mesmo endereço do seu afeto, na mesma gaveta das memórias, no lugar exato da sua dor.
Na cozinha, lavou a cafeteira. Hora de recomeçar. Mesa posta. Gravidade zero.
Todo dia levanta de ótimo humor, cedinho, quase com o sol. Todo dia se rende ao café na mesa com parcimônia. Tudo bem lindo, mesmo que esteja sozinha. Comunga consigo da refeição. Mas hoje não. Hoje ela se deixou levar pela morosidade do alvorecer. Ainda entre os lençóis, decidiu escrever pra ele.
"Meu alvorecer é leve. Bruma que voa ao apelo da brisa mais displicente. O corpo, este registro geral, ainda traz indícios do que fomos. E não mais seremos. E eu sigo leve, grata pelo carimbo das tuas digitais que jaz na minha pele. E eu sigo alegre, pela capacidade de amar e de olhar o mundo quando tudo é possibilidade, e cor, e luz. E pensando assim, somos também tudo isso. Eu sou a flor que abriu mansa. O regozijo que me traz um balanço de rede, balanço de vida, vida afora. Muitas vezes escreverei a palavra VIDA, porque é ela quem vem batendo à minha porta insistentemente, me chamando para bailar, me inquirindo sobre o cadeado que pus na maçaneta. É esta energia vital que não me deixa, não me leva nem me traz. Existe em mim. E quando em teus braços me envolvi, foi a mim mesma que abracei. Foi a minha VIDA que sentiu tanto o prazer de ser, e estar, e exultar, e gozar. E quando em teus braços finalmente vejo a luz, é a minha VIDA que entrego ao mundo, a partir da fusão de nós mesmos. E quando me rendo à fábula de nós dois, é como se encenasse meu futuro. É como se fizesse uma oração ao tempo que virá que sim, seja de amor. Neste ritual de volta ao mundo em que me encerro, já me encontro. Não mais estrangeira de mim nem muito menos longe dos meus. É libertador ver você despojar-se de nós. O seu despertar. A sua persona voltando à vida real. A voz, o corpo, a mente, todos em harmonia e em alinhamento. Poesia concreta. Me percebi espectadora do seu movimento. Um beijo na testa antes de me deixar e se entregar à chuva na beira do rio. Um gesto tão amoroso quanto amigo. A certeza de que o laço não se esvai, mas nossas escolhas ali estavam traçadas. A chuva lavou a alma de qualquer culpa, porque não existe penalidade no sonho.
Dentro de mim, outra revolução se aproxima. Outra concepção de amor. Outra razão de VIDA. Aconchegada na memória do suor, aninhada no peito do êxtase. Para o tempo, este elo marcado na pele, esta energia fundida no amor da tarde que se despede. Vejo a VIDA pela minha lente poética. Ela reluz".
Escreveu, mas não enviou. Fechou o computador esperando que o texto apure. Escrever é sempre uma maneira de temperar os sentimentos. Tem exercitado escrever cartas que jamais serão lidas. Que jamais foram enviadas. Cartas que não terão resposta.
Cartas destinadas a analfabetos, incapazes de ler pessoas.
Nem sempre as respostas chegam. Elas estão em nós. Já habitavam aqui. No mesmo endereço do seu afeto, na mesma gaveta das memórias, no lugar exato da sua dor.
Na cozinha, lavou a cafeteira. Hora de recomeçar. Mesa posta. Gravidade zero.
domingo, 26 de maio de 2019
Olhos de pimenta
Planta uma semente. Na sorte, ela vai brotar. Na sorte, ela floresce e frutifica. O que você fez além de regar, velar aquele surgir de vida?
Quase nada... regulou o sol, cuidou de uma praga que se avizinhava... mas a força da vida mora na semente, na planta, na flor, no fruto, na nova semente que se apresenta.
Faz um tempo, plantei uma semente de pimenta. Revolvi a terra, semeei, cuidei da luz, da sombra, comemorei cada nova folhinha. Ta linda. Mas não é minha. É dela mesma. Vou, com sorte, me deliciar com seu fruto. Vou, com sorte, temperar a vida com ela.
Suas folhas brilham de manhã, verde claro quase neon conversando com o sol. Verde conversando com meus olhos. Verde que espera, no seu tempo, chegar o tempo da colheita.
Suas flores mínimas, branquinhas com miolo amarelo tão singelo, guardam seu segredo: de herança, fruto forte, vibrante, ardente.
Amo a pimenteira. Talvez meu amor resida em mim mesma.
Amo a pimenteira pelo que tem de semelhança com a minha vida. Meus frutos, minhas flores, minhas sementes... minhas folhas queimadas pelo sol, as novas brotando.
A cada nova safra, uma força a mais, um impulso de vida mais forte, um recomeçar. Semente que brota em pedra.
Somos pareias, eu e a pimenteira que semeei. Comparsas na viagem da vida, neste recomeçar absurdo. Nesta busca pelo tempo que se esvai a cada piscar.
Já dizia Clarice: “Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa qualquer entendimento.”
Quase nada... regulou o sol, cuidou de uma praga que se avizinhava... mas a força da vida mora na semente, na planta, na flor, no fruto, na nova semente que se apresenta.
Faz um tempo, plantei uma semente de pimenta. Revolvi a terra, semeei, cuidei da luz, da sombra, comemorei cada nova folhinha. Ta linda. Mas não é minha. É dela mesma. Vou, com sorte, me deliciar com seu fruto. Vou, com sorte, temperar a vida com ela.
Suas folhas brilham de manhã, verde claro quase neon conversando com o sol. Verde conversando com meus olhos. Verde que espera, no seu tempo, chegar o tempo da colheita.
Suas flores mínimas, branquinhas com miolo amarelo tão singelo, guardam seu segredo: de herança, fruto forte, vibrante, ardente.
Amo a pimenteira. Talvez meu amor resida em mim mesma.
Amo a pimenteira pelo que tem de semelhança com a minha vida. Meus frutos, minhas flores, minhas sementes... minhas folhas queimadas pelo sol, as novas brotando.
A cada nova safra, uma força a mais, um impulso de vida mais forte, um recomeçar. Semente que brota em pedra.
Somos pareias, eu e a pimenteira que semeei. Comparsas na viagem da vida, neste recomeçar absurdo. Nesta busca pelo tempo que se esvai a cada piscar.
Já dizia Clarice: “Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa qualquer entendimento.”
segunda-feira, 20 de maio de 2019
pretexto
Meu pretexto barato
Óleo que não se mistura no caldo da alma,
Paisagem na parede,
Janela pro nada.
Meu pretexto miúdo
Evoca todo o sentido,
Reside na esquina do ser,
Encerra frases sem nada dizer.
Meu pretexto vazio
É simulacro de vida,
Fuga do vácuo,
Alegoria em dias de momo,
Maquete de mim mesma.
Tudo pretexto.
domingo, 5 de maio de 2019
Bendita raiva
Eu tenho exercitado sentir raiva.
Este sentimento primitivo, primário, legítimo e culpado.
Este sentimento primitivo, primário, legítimo e culpado.
Não sublimo. Não me escondo. É raiva.
Do ônibus que atrasou, do salário que não chega no final do
mês, das ruas sujas do Recife.
Eu sinto raiva de mim também.
Porque passei tanto tempo jogando pra baixo do tapete o que
doía. E entupi tantas veias com a sujeira. Feito quem acumula
louça de uma semana na pia e ao final não tem sequer uma xícara pro café
matinal.
Como quem deixa pilhas de roupa suja...
Ou como quem não olha de frente pra dor que sente.
Como quem deixa pilhas de roupa suja...
Ou como quem não olha de frente pra dor que sente.
A raiva, ao contrário, tem sido um ácido muriático, abre caminhos, desentope. Pode ter aquele efeito de
devastação. Pode demais. Mas limpa. Deixa leve.
Não quero mais propaganda de margarina.
Nem parecer personagem de comercial de sabão em pó.
Não quero mais propaganda de margarina.
Nem parecer personagem de comercial de sabão em pó.
Eu tenho raiva de você. E não peço desculpas.
Nem as aceito.
Você, que no meu momento frágil, chegou e abraçou minha
solidão.
Você, que naquela hora de não-amor que eu vivia, me encheu de volúpia.
Você, que em público me beija e no privado me ignora.
Você, que se mobiliza sobremaneira pelo próprio desejo e em nada com o que eu sinto.
Você, que naquela hora de não-amor que eu vivia, me encheu de volúpia.
Você, que em público me beija e no privado me ignora.
Você, que se mobiliza sobremaneira pelo próprio desejo e em nada com o que eu sinto.
Eu tenho, que bom, sentido muita raiva de você.
Eu tenho, que maravilha, me enfurecido com este amor que
você brada aos quatro ventos, lirismo poético inútil, encastelado na sua
loucura.
Das fotos felizes publicadas aos lotes...
Das fotos felizes publicadas aos lotes...
Tenho raiva da sua incoerência.
Tenho raiva da sua covardia.
E do seu egoísmo.
Bendita raiva. Estou viva.
quinta-feira, 25 de abril de 2019
Receita pra esquecer
Esqueça. Eu tenho feito o exercício diário de esquecer
também.
No mundo inteiro, pessoas lutam, se exercitam, pra não
esquecer.
Enquanto eu afasto os pensamentos, outros se agarram
fervorosamente aos lampejos do presente.
Eu quero esquecer teu passado recente, teus devaneios
ébrios, as narrativas ao vento.
Esqueça. Eu tenho feito o exercício assiduamente. Antes de
esquecer, a gente lembra. Apagar a memória não é um projeto fácil. Nem uma
tarefa simples.
O pensamento compulsivo de esquecer, antes, exaure a
lembrança. Esgota.
Começa aos poucos. A cada dia você esquece um pouco. Um
cheiro, uma frase, aquele abraço.
Outro dia uma tia querida, revolucionária na juventude,
beirando os 85 anos, me falou assim: eu te amo tanto... mas não lembro mais teu
nome. Tanta poesia numa fala tão triste....Ela vibrando no amor, alimentando a vida, numa dignidade, numa necessidade de estar presente e inteira, mesmo quando vai se esvaindo o desenho da rotina. Sigo como sempre, desde criança, me inspirando nela.
Começa aos poucos, não esqueça.
Vou
esquecendo aos poucos. Ensinando o corpo a omitir. A mente, sigo doutrinando,
que nada de verdade aconteceu. Foi tudo um pesadelo daqueles que a gente acorda
jurando que era verdade. E de tanto repetir, vou acabar acreditando.
Aos poucos, apago também da alma. Bem aos poucos, como uma
borracha que, de tanto trabalhar, esquenta o papel, mas deixa seu rastro
borrado. Não é difícil esquecer um par de horas, aquela noite parca de luz.
Daqui a pouco, tudo não passa de uma mancha, uma aguada.
Esquecer é quarar com alvejante um tecido ao sol. Despigmentando seus corantes, amainando as vibrações.
Se alguma coisa ainda eu possa sugerir, nesta amnésia que vai
matando a história, antes que seja tarde, esqueça.
Melhor, enquanto ainda temos memória.
domingo, 14 de abril de 2019
Pele
Você saiu.
Por dentro, um tambor ritmava a música da vida. Reverberando no corpo todo, acordando as células, abrindo as veias, levando um sangue novo. Por dentro havia oxigênio, finalmente.
Nada ficou de você comigo, a não ser os desenhos feitos aqui e acolá pela urgência da barba.
A não ser pelo cheiro, volátil, descomprometido, que impregnou no meu vestido. Aliás, passei o dia seguinte com aquele vestido, na doce tentativa de adiar a sua partida.
Você não deixou nenhum vestígio visível, nem sequer uma pasta de dente na pia. Uma toalha fora do lugar, talvez...Tinha um copo vazio sobre a mesa nua da sala, nada mais impessoal.
Por dentro, você inaugurou em mim a vontade de ser. A imensa capacidade de estar.
Confesso que sofri de um certo torpor. Isso sempre me acomete em momentos extremos de emoção. E ao longo do dia saí juntando as memórias, como quem arruma uma casa e recolhe objetos em desalinho depois de uma grande festa.
Um diálogo embaixo do piano, um beijo profundo jogado em cima da poltrona da sala. A minha fantasia e a tua espera no corredor.
A porta fechou.
A poesia desenhada na minha alma feminina é das mais profundas. A beleza de duas ou três horas vividas à revelia do destino, revolucionando as rimas.
Poesia abstrata, na pele concreta.
E voltamos a apertar as mãos na rua. Vamos falar de política nos bares, brindar e rir. Seguimos contando como estão os filhos, e como foi aquela semana de trabalho. Um dia, vamos nos abraçar e falar há quanto tempo não nos esbarrávamos.
São os caminhos da vida.
A arte dos desencontros.
A arte dos desencontros.
sexta-feira, 12 de abril de 2019
pérolas da Mamede.
Foi você trabalhando de dois em dois anos em campanha eleitoral que fez naufragar o barco.
Qual era do defeito que ele tinha e que você só descobriu agora, mais de 20 anos depois??
Uma pessoa tão legal, você jogando pela janela.....
Faz um favor pra mim? Conversa mais com minha mulher não, porque vai que ela aprende estas tuas ideias de separação também.
Nesta idade você não arranja mais ninguém. Melhor voltar pra ele.
Quem sai de casa, abandona, perde totalmente a razão.
E você saiu porque tinha outro né? Ta na cara!
Cuidado... estas ideias liberais, de mulher liberada, nenhum homem aguenta não.
E ainda deixa o moço com uma mão na frente e outra atrás?
Você acha que ainda vai encontrar alguém mais legal do que ele? Jura? Se cuida.....
Desculpa, amiga.... mandei aquela foto sem querer... é que vocês sempre brincaram carnaval e agora vi ele brincando e achei legal mandar pra você.
Sei, sei... ele é uma pedra... mas vc ama esta pedra. Volta....
terça-feira, 9 de abril de 2019
Egos bomba
Quero Mais.
Mais que estar num canto do quarto,
mais que estar pela metade,
mais que conviver.
São egos bomba ambulantes prestes a promover um atentado ao próximo.
São almas inquietas, com baixa taxa de amor.
NÃO quero mais.
Quero querer.
Quero escolher a música e o passo da dança.
Desejar o amargo ou o doce,
Experimentar o salto e o voo.
ansiar pela a queda.
Implorar pela vertigem.
Explodir no ar.
quinta-feira, 4 de abril de 2019
Uma carta para quem nunca vai ler
Que bobagem, que estupidez, escrever uma carta para quem nunca a lerá.
Que estupidez!!!!!!
Escrever uma carta para dizer que sim, o amor parece que se foi, mas insiste em ficar. Parece que se foi, mas se esconde na chaleira do café, na manhã dos domingos.
Escrever uma carta ao amor que já se foi. Ao amor que eu mesma quis que se fosse, que desapregasse da minha pele.
Ao amor tóxico, ao amor tristeza, ao amor covardia, ao amor vazio.
Escrever esta carta para ninguém ler.
Mas para que saísse de mim mais um pedaço deste sentimento que afoga. Oxigênio em ambiente rarefeito.
Fui embora imaginando que ficaria. Fui embriagada de um éter de vida que talvez nunca mais eu sentisse o cheiro.
Tive alucinações de vida. Tive desilusões de matar.
Pelos poros eu eliminava meu prana, energia que movia os sonhos.
E, no entanto, a carta sopra nos meus ouvidos talvez como sendo mais um suspiro. Um pedido que sim, vá.
Um pedido para que deixe alguma coisa de mim ficar. Um apelo ao meu ser, que seja.
Que assim seja, que se respeite, que se ame, que se aninhe.
Uma carta para quem nunca me leu. Uma carta para quem jamais me lerá. Um documento vazio de intenção, pleno em mim.
Que bobagem, que estupidez, repito! Escrever uma carta de amor para quem jamais decifrou os signos, símbolos e métricas da alma que escreve.
Uma carta para analfabetos funcionais, que não interpretam as linhas vitais. Chegue este amontoado de palavras aos seus olhos, não traduzirás.
E ainda assim, teimo em seguir contando a minha história.
Porque basta que eu mesma a compreenda e a traduza. Que eu veja nas suas entrelinhas, meu sentido.
Que eu seja minha própria tradutora e intérprete.
Domingos são dias de desperdiçar mesmo... eu, em frente ao computador, a escrever um bilhete para quem nunca o lerá....
domingo, 17 de março de 2019
Alguém pra fugir comigo
Pra começar, é melhor falar daquela função da arte, que mexe com as nossas tripas. Remexe com as avessas das entranhas e quando a gente sai, ainda fora do lugar, tem certeza de que jamais será a mesma. Pra começar, é importante falar ainda daquela outra função da arte, aquela que nos leva a lugares imensos, horizontes infinitos, mas que faz tudo isso enquanto se está sentada numa poltrona.
Não sei o tudo que se escondem
nas malas. E não me refiro ao que podemos decifrar nos aparelhos ultrassensíveis
de raio-x, mas dos lugares seguros que deixamos, dos sentimentos cuidadosamente
dobrados, das saudades ensacadas a vácuo, das dores que colecionamos. Fugimos e
refugimos tantas vezes. E a cada vez, escondidas nas valises, as memórias
seguem conosco.
Foi nesta paleta de sentimentos
que sentei hoje na primeira fila à esquerda, pertinho do som, lá no teatro Apolo
Hermilo. O texto do espetáculo, eu não conhecia, nem me dei ao luxo de
pesquisar antes de ir. “Alguém pra fugir comigo”. Sugestivo.
Eu ando fugitiva. Eu ando
refugiada na minha cidade. Buscando novas rotas, inaugurando outros atalhos. Fugir
sempre me pareceu uma coisa esquisita, mesmo quando vitalmente necessária. A
gente foge dos nossos medos, mas traz cada um deles muito bem guardados. A
gente se refugia, se reinventa, muda de lugar e, quando menos espera, um cheiro
nos transporta pra origem, pra onde não queremos voltar.
A propósito, há 7 meses eu fugi. Desta
vez, fisicamente. Desta vez, uma fuga não exatamente planejada. Mas o roteiro já
vinha se desenhando fazia um tempo. Fugi pra não me perder de mim. Desde então,
sigo as minhas pistas. Venho me reencontrando com alguns fragmentos, com
rompantes de quem eu sou. Fugi com duas malas pequenas. Tive dez minutos para
planejar o que colocar nas malas e pra onde ir.
As malas vermelhas foram minha
morada por meses. Foi revelador abri-las a cada dia e me descobrir um pouco
mais. Numa delas, sabe-se lá porque, só havia roupas íntimas. Mala vazia, cheia
de intimidades.
Na segunda, um pouco maior, um
coletivo de desencontros. Um arremedo de enxoval para a vida nova. O passaporte
para eu ser o que quisesse, combinando o que não se imagina. Análise
combinatória.
E eu entrei com a minha bagagem
naquela casa de espetáculo. Não pesava. Não doía. E na primeira cena, um
incômodo. Desejei sair. Desejei não ver o drama de Liberdade. Desejei muito ter
chegado atrasada.
Meu corpo dialogando com o corpo
do elenco, os olhos vidrados, mútuos.
Fui assediada em ônibus, fui
estrangeira, fui menino e mulher. Morri e renasci. As malas mudando de lugar. As
roupas, chapéus e sombrinhas adornando meu espelho. Eu não consigo entender sua
lógica.
Não quero mais. Não me chame pra
ver. Não quero ver a trans preta ser abusada. Não quero testemunhar o
preconceito contra os corpos. Não quero, nesta lente de aumento do teatro, enxergar
melhor.
Há quem viva, há quem morra. A
cidade de 100 anos atrás não é a mesma de hoje. Quem dera eu guardasse nas
pedras da casa que abandonei algo de mim. Meu código energético que se funde
com o morador de rua do Recife. Que se nutre da poesia marginal, que se enrosca
no meu presente. E daqui a pouco não serei nem eu.
Serei mais um dos passantes fugindo
do tempo, esperando e desesperando os ônibus.
A esta altura, o maior desafio
era sentar na primeira fila, porque chorar não era mais uma opção. Saí depois
dos aplausos, mas eis que o espetáculo veio comigo, na minha bagagem.
E eu acabei descobrindo que só se
foge sozinho, mesmo se alguém vem junto.
sábado, 12 de janeiro de 2019
Esforço pra ser feliz
Ele faz esforço pra ser feliz. Esforço.
Não fui eu quem disse. Não sou eu que acho.
Ele disse que faz esforço pra ser feliz.
Porque eu sou feminista, sou revolucionária.
Porque eu sou ativista, sou revoltada.
Porque eu sou firme, sou estressada.
E ele faz esforço. Pra ser. Feliz.
Eu faço esforço pra compreender.
Mas não sou infeliz. Pode uma pessoa inteira ser infeliz? Pode não. Pode nunca.
Eu busco. Eu acho. Eu viro no avesso. Eu corro atrás. Me reinvento. Ressignifico novos sinais. Sinalizo novos caminhos.
E ele, esforço pra ser feliz. Incompleto na essência.
Ponto final.
Não fui eu quem disse. Não sou eu que acho.
Ele disse que faz esforço pra ser feliz.
Porque eu sou feminista, sou revolucionária.
Porque eu sou ativista, sou revoltada.
Porque eu sou firme, sou estressada.
E ele faz esforço. Pra ser. Feliz.
Eu faço esforço pra compreender.
Mas não sou infeliz. Pode uma pessoa inteira ser infeliz? Pode não. Pode nunca.
Eu busco. Eu acho. Eu viro no avesso. Eu corro atrás. Me reinvento. Ressignifico novos sinais. Sinalizo novos caminhos.
E ele, esforço pra ser feliz. Incompleto na essência.
Ponto final.
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