Morei em Paris. Isso é inesquecível.
Depois das primeiras semanas de admiração, e até mesmo de sensação de estar vivendo um verdadeiro conto de fadas, comecei a viver outra fábula.
A de passar pelo arco do triunfo e me parecer o marco zero do Recife; ver a
Tour Eifell como mais um elemento natural da paisagem...
Eu estagiava na
Sala Richelieu, no coração da cidade luz. Almoçava diariamente no refeitório da Comédia Francesa, tendo como paisagem os jardins do
Petit Palais. Tudo isso é maravilhoso e inesquecível, mas virou rotina.
Todos os dias impreterivelmente às cinco da tarde eu saída do teatro, ia pro ponto de ônibus com a minha
Carte Orange, totalmente integrada àquele sistema. Quando tinha um dinheirinho, tomava um sorvete na
Hagen Dazs, que fica pertinho dali.
Pegava o ônibus 95, que ia me deixar na
Gard du Nord. Eu estagiava no cartier chique e morava na
banlieue, a periferia.
Perfeita vivência.
Os ônibus neste horário estavam invariavelmente cheios de crianças de todas as idades. Os carrinhos de bebê ocupavam espaços reservados junto às portas. Os mais velhos traziam suas mochilas às costas. Tudo ficava meio barulhento.
Todos os dias também eu percebia uma presença nada comum. Cabelo muito branco que fugia um pouco à touca de tricô arroxeada, um sobretudo azul claro muito, muito grosso. Ela também usava meias de lã escuras e tinha sempre um saquinho plástico na mão. Uma bolsa preta pequena, tipo carteira, que aparentava muitos anos de uso pousava no colo. Aquela senhora francesa estava em casa.
Não ficava em casa fazendo tricô, nem muito menos ia aos cafés encontrar os amigos.
A cada dia, ela escolhia um "parceiro" de conversa.
Com sua voz já meio falha, rouca e bem fraquinha, dava pitaco sobre educação das crianças. Com propriedade, falava sobre a mudança dos tempos.
Tinha mãos firmes. Caminhos azuis desenhados em alto relevo nas costas das mãos falavam tanto quanto as linhas da vida que se revelam pros ciganos. Seus gestos eram lentos.
E eu, estrangeira quase adaptada, aproveitava aquele momento para treinar e testar minha capacidade de compreensão na língua bastarda. Era bom compreender as conversas corriqueiras. Eu nem sentia vontade de falar.
Deixei de tomar o sorvete pra não perder o ônibus.
Procurava chegar mais perto dela a cada dia. Aquela figura comum me encantava.
Até que um dia sentei à sua frente. Ela me olhou e perguntou as horas. A resposta veio com um sotaque carregadíssimo. Claro que a segunda pergunta foi de onde eu era.
Respondi e aproveitei pra dizer que percebia a presença dela diariamente.
Foi o suficiente. Madame me contou que morava no ônibus. Aliás, tinha um apartamento minúsculo na Republique, mas como tinha pavor de solidão, passava o dia inteiro dentro daquele ônibus. Escolhera aquela linha porque gostava muito do itinerário, quase turístico. E porque também poucos imigrantes andavam por ali. Madame era francesa sangue puro. Talvez tenha aceitado conversar comigo pelos meus olhos verdes. Uma licença para uma sul americana, me pareceu.
Ousei e perguntei o que havia dentro do saquinho. Ela sorriu. Disse que eu era observadora. Tinha comida. Uns biscoitos, algum baguete, tomates, queijo. Preferia fazer as refeições na companhia de pessoas. Mesmo que fossem passageiros.
Não sentia solidão no coletivo.