segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Concerto para Forró e Orquestra




Quarta-feira, 14 de novembro. Cinco horas da tarde. Praça José de Alencar, Fortaleza. Uma manifestação sindical aporta com forte aparato sonoro. Clamam por melhores condições de trabalho para a categoria.
Cinco e quinze da tarde. Teatro José de Alencar, em frente à praça. Dois ônibus estacionam na rua lateral. Desembarcam 85 pessoas. Instrumentos de cordas, percussão, sopro... uma verdadeira mudança.
A Orquestra Sinfônica Jovem do Conservatório Pernambucano de Música, formada por jovens entre 15 e 25 anos, chega para sua apresentação. Mais de 800 quilômetros de estrada.
Agora, são seis horas. A orquestra com sua formação completa sobe ao palco para afinação de instrumentos e ajustes na luz. Faltam duas horas para o espetáculo, patrocinado pela CHESF e pelo Governo de Pernambuco.
Na praça, o protesto virou festa noite adentro.Do lado de fora, ânimos alterados. Aumentam o som das caixas e começa o show: forró eletrônico, bailarinas em praça pública. No teatro, o público começa a chegar.
Oito e quinze da noite. Começa o concerto da orquestra. O som estridente da manifestação sindical invade a platéia.
Cena Lastimável!
Na administração do Teatro José de Alencar "ninguém pode fazer nada". E o concerto da orquestra se arrasta. Os acordes ficam inaudíveis, abafados pela guitarra e pelos teclados. A cada pausa das cordas, o público era agraciado com a invasão intermitente do som que ecoava da praça. Concerto para forró e orquestra.
O maestro José Renato Accioly anuncia o placar: 5 x 0 para a festa sindical. Um espetáculo de constrangimento.
Nove e meia da noite: Encerramento do concerto. Músicos frustrados, platéia lesada, produção do teatro inoperante.
Na praça, o protesto virou festa noite adentro.
De quem é a culpa, FORTALEZA?????
Quem é o responsável por autorizar dois eventos incompatíveis na mesma hora, dia e local?
Aos gestores públicos da cultura, clamamos por sensibilidade!!!!!!!

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

....e não há nada de novo sob o sol



Meu tempo é de silêncio.
Tanto, que recorro aos Eclesiastes, porque meu tempo é de calar.


"TUDO tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.
Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou
Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar;
Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar;
Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora;
Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar;
Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz".

terça-feira, 16 de outubro de 2007

A vida que imita a arte



Fui ver tropa de elite. Isso mesmo. Fui ver.

Resisti a todo e qualquer piratex porque não abro mão do cheiro da sala escura, do ritual de olhar o horário no jornal, entrar na fila, escolher um bom lugar pra sentar.
Esperei e lá vou eu neste feriadão assistir ao filme.
É obra de arte. Obra de arte da vida real, crua, nua, sangrando, até.
De um lado, a capacidade de uma equipe em contar esta história nada poética, transformando tudo em relato artístico.
Do outro, minha alma humanista levava uns sopapos. Durante a sessão, umas cinco vezes quase me levantei e saí. Mas pensava que deveria assistir até o fim. E contrariava meu desejo.
O resultado foi que ao final, já exausta, quando as luzes acenderam, eu era um molambo. Pernas dormentes não queriam sair da cadeira. Minhas lágrimas gritavam.
Com muito custo, saí do cinema.
E vamos pra cerveja. Me senti um E.T.
Somente eu tinha visto o filme como obra de arte. As outras pessoas tinahm visto no cinema, talvez, o jornal nacional.
Tentei ainda argumentar, espernear, explicar. Qual nada.
Então, reduzi minha mofada e antiquada sensibilidade ao meu peito, espremida.
Hoje, quando abro os jornais, a manchete é chocante:
Agente penitenciário se mata depois de assistir ao filme tropa de elite.
Ele efetuou os disparos ali mesmo, dentro da sala, enquanto subiam os créditos.
Subitamente, libertei a minha sensibilidade humanista que estava presa no peito. Que tipo de sentimento aquela película despertou no homem já desesperado?
Nunca vamos saber. Talvez nem devamos saber.
Pois é, meus caros. A vida imita a arte.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

A última vida


Cheiravam a jasmim as rosas mesquita.Ela passava a mão sobre sua pétalas amarelas, pequeninas, sem temer os espinhos. Um olhar mais atento e todo o ambiente cheirava a jasmim. Um perfume persistente. Distante, começava a sentir a chuva chegando. Um tropel firme e seguro, compasso bem marcado chegando pelos telhados vizinhos.
Antes fossem a salvação.
E o jasmim agora compactua com o agreste da terra batida molhada. A água sobre sua cabeça martela a mesma cantiga.
Entorpecida, já no limite da razão, despenca no chão. As longas tábuas do assoalho dançam sinuosas.
Sonha novamente seus sonhos de menina, fitas no cabelo. Relembra os planos ainda muito jovem. Nenhuma conexão com a vida.
Nenhuma ponte, nenhuma palavra em comum.
Vive-se mais no último instante. Vive-se, pelo menos. É a última chance.
Sono, muito sono. Certamente são os últimos momentos.
Olhar fixo nas telhas de argila. O teto vai subindo. Sumindo.
E o cheiro do jasmim resiste. Domina as frágeis roseiras.
Faz seu corpo descansar pela última vez.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Sabedoria



Instante é o intervalo entre o sinal abrir e o carro que está atrás buzinar. Millor Fernandes dizia mais ou menos isso. E os instantes estão cada vez mais intensos.

Tolerância, paciência, temperança.... são qualidades em extinção.
Chama o Millor!!!!!!!


segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Ninho


A gente saiu pra comprar um carro e acabou comprando um apartamento. Naqueles tempos, velhos tempos, nossa coragem era muito, muito maior do que a consciência de que deveríamos poupar, juntar, planejar.... compramos e pronto. Compramos e ponto.
As prestações mensais eram nada mais nada menos do que nosso salário junto!
E a nossa inocência foi tratando da vida. Nossos anjos da guarda devem ter trabalhado muito pra garantir que a gente realmente conseguisse honrar os compromissos.
O primeiro rebento já estava lá. Boquinha aberta, feito passarinho, esperando alimento.
Logo, veio o segundo pro ninho. E a família, naquele segundo andar, ia vivendo.
Portas arrancadas viraram estantes,
Cabos de vassouras, guarda-roupas.
Criatividade, criatividade.
Muito espaço pras crianças aprenderem a andar. Poucos móveis.
E os anjos da guarda, coitados, sem férias.
Era quadro vendido na véspera da intercalada, convite pra trabalho no mês das chaves....
FELICIDADE.
Hoje ele deixou de ser nosso.
Mudamos pra outro ninho, com nossos filhotes já batendo asas muito fortes.
Durante todo o dia, nenhum tipo de melancolia me veio à mente.
Mas agora, perdoem-me.
Senti falta do momento de improviso da minha vida.
Tínhamos um fusquinha verde-água. Saímos pra trocar o bichinho e acabamos comprando um ninho...

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Padecendo no Paraíso

Raízes robustas e folhas vívidas, meus meninos vão crescendo.
E eu, aprendendo com eles. Este clichê é a mais pura verdade. E que verdade incrível.
Vejo-me neles, mas vejo-os senhores também.
E o engraçado é que o passado vai ficando cada vez mais presente. É como se a gente segurasse forte a mão da história.
E o futuro inevitável virá. Os meus meninos serão sempre.




quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Musa

Repousa sobre o canapé, imóvel, a natureza morta.
Dormem os braços, as pernas, o quadril.
Dormentes, já não fazem parte do corpo.
Os braços enlaçam as faces,
Caminho que revela trilhas alvas no perfil.
Dialoga o ventre com o olhar atento.
O ritmo agitado do peito
No contratempo do corpo inerte.
Pulsam os seios nus:
Imagem cálida de santa venerada.
O pincel passeia a traços largos,
Linhas essenciais.
Curvas montanhosas e um jogo de luz e sombra
Cravam na tela a tinta acrílica.
O sol espreita a cena por entre as telhas vermelhas.
Irmanam-se os odores
Do corpo dela perfumado de mulher,
Dos corantes compactos no tecido,
Do cheiro forte da água que corre pela viela estreita.
Cansaço e sedução.
O melhor ângulo para a poesia dele.
O melhor argumento para eternizar a pele dela.
Foram-se tardes inteiras. Passaram-se anos. Traços mais livres e largos seguiram imortalizando a musa. Ancas vastas, carregadas de vida e história pelo corpo. Saciaram a certeza. Tudo sempre estivera assim. Tardes de amor, vida em comum.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Um sopro


No dia em que eu morri, de coração impregnado, chovia muito.

Não fazia frio.
As velas do teatro teimavam em brilhar. Resistiam aos humores da brisa como quem procura por oxigênio para alimentar os pulmões.

A peleja das velas ..... Suas sombras inquietas flamejavam figuras pelas paredes, entre as coxias, que subiam no palco como entidades de outro mundo. Vinham para uma longa festa.
No dia em que morri a chuva também brincava de existir. Os carros à porta do teatro, puxados por cavalos vigorosos e ela vinha como um raio. Dissipava suas gotas em córregos e nos meio-fios. Molhava as casacas pretas, desenhava com vapores abstrações nas janelas. Apressava os passos de salto agulha na pedra sabão e nos degraus de mármore da entrada.
Na sala de espetáculo, não se tomava conhecimento das nuvens fortes, nem sentia- se o vento úmido e denso.
La dentro os perfumes fundiam-se e as vozes eram como murmúrios, correnteza de rio que insinua a chegada.
Nada se decifrava antes de começar o concerto.
Como faço nesta vida, escolhi meu melhor xale. Vesti um modelo que mostrasse bem o meu colo num decote pouco insinuante que emoldurava os ombros. Cabelos displicentes sequer reagiam ao vento.
Acomodei os convidados nos camarotes e sentei-me para apreciar a orquestra talvez na terceira peça. O coração batia forte e suas ondas transbordaram pelos meus olhos. Como acontece nos dias de hoje, o choro era de felicidade.

Os metais contavam histórias. As cordas reagiam com lamentos.
Posso ouvir suas harmonias até hoje.

Foi quando o maestro anunciou. Fiquei em pé para aplaudir. O maestro dedicou para mim a próxima música.
O coração aplaudiu forte demais. Rasgou as veias, arrancou suas paredes.
A minha vista escureceu. Ainda olhei em volta e senti o instante último.
Uma dor forte e definitiva. Como uma vela que teimou e foi vencida pelo vento. Um sopro.
E foi assim que eu morri feliz.

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Correnteza




Ele disse pra ela: poesia
Ela disse pra ele: sorriso.

Depois,
O corpo dela foi invadido pela poesia dele.
Poesia abstrata, na pele concreta.

O sorriso dela era cálido.
A poesia dele, areal.

Ela sabia que o amor é assim:
Um encontro de estranhos
Caminho junto a seguir

Então, enfim, a poesia dela foi envolvida pelo sorriso dele.

E nada mais havia a fazer.

Na ponte, correnteza do rio que corre por baixo,
Ela sorriu sem poesia.
E ele fez um verso triste.

Passaram um pelo outro
Sentidos opostos
Já de costas
E foi-se o momento preciso.
O sol tinindo ao meio-dia

Fez-se uma poesia anônima
Sem registro do sorriso real.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Enxaqueca



"Pat,
Tu num sabe de nada.
Ontem ainda eu tava louca de dor de cabeça. Já tinha desistido de tomar remédio, tentando aprender a "conviver" com esta companheira tão indesejada.
Eis que me surge a cura, da forma mais inesperada possível.
Fui almoçar no Shopping. Comi uma salada bem honestinha, sem excessos. Depois, quando tava saindo da praça de alimentação, minhas duas amigas (que no lugar de almoçar decidiram comer cada uma um pedaço ABUSADO de torta de chocolate com morango) viram uma confusão tremenda na Arezzo.

Na vitrine, a explicação: TRÊS PARES DE SAPATO R$ 99,00.Loucura! Loucura! Loucura!
A visão de fora da loja, pelo vidro, era de um filme mudo. Nenhum som chegava até nós. Mas os movimentos eram frenéticos.
Hormônios dançavam dentro da loja.
Mulheres seguravam um pé somente do modelo e procuravam o outro entre as cadeiras, por baixo das prateleiras.... Você não acredita a confusão.
Minha cabeça latejava.
Minhas amigas, claro, entraram.
Pedi às meninas que escolhessem somente um par pra mim (um par pra cada uma) e fui
pagar uma fatura na lotérica.
A cabeça não dava trégua. E eu carregando aquela dor há três dias, ou talvez mais.
Quando voltei à Arezzo, já não havia mais como entrar na loja. Os seguranças estavam na porta e minhas amigas, loucas lá dentro. Uma delas veio até a saída e me mostrou uma sacola cheinha de sapatos que ela tinha "escolhido pra mim".
Fiquei na fila me sentindo uma idiota, enquanto esperávamos alguma pessoa mais consciente deixar aquele lugar. Eu era a quinta da fila. Até que chegou a minha vez. Entrei.
O barulho não era de cinema mudo, absolutamente.
As loucas que estavam lá dentro ( inclusive esta aqui que vos escreve) falavam complusivamente. Cada uma que desse opinião na compra da outra.
Eu precisava ficar vigiando meus pares de sapato, sob pena perdê-los antes ainda de serem efetivamente meus. Esperava agora vagar uma das cadeiras pra eu experimentar um a um. Ou dois a dois......
Experimetei todos.... LINDOS!!!

A esta altura, meus hormônios eram, talvez, os mais animados da festinha.

Fui descartando alguns pares (com muito pesar) até ficar com quatro.
Um deles, escolhi pra minha mãe.
No final, naquela babel de anabelas, saltos agulhas, plataformas, chinelas rasteiras, e sapatilhas, cada uma de nós escolheu os seus e fechamos 12 pares!!!!!!
As três juntas, claro.
Saí com minha sacolinha, feliz da vida. Paguei o estacionamento do shopping e quando estava dentro do carro dei por conta: a enxaqueca tinha ido embora.
D-o-r d-e c-a-b-e-ç-a z-e-r-o.....
O problema, amiga, é que sapato da Arezzo é caro e eu não ou ter mais condição de fazer outra farra dessa em muito tempo....
Um beijo, Germana"

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Procura-se a menina dos olhos.



"Todo mundo tem um irmão meio zarolho, só a bailarina que não tem".


Eu era esta irmã. Tomei coragem depois de 35 anos e ajeitei o olhar. Alguns me disseram que perdi o charme. Outros, que nem havia motivo de mudança. Teve gente que ficou com raiva!

A VERDADE é que eu tinha perdido a capacipade de ver em profundidade. Agora, estou maravilhada com a possibilidade de ver e sentir as coisas diferente.

Pensando bem, eu já olhava de lado. Olhava difuso.

Agora, faço questão de arregalar meus oinho verdinho e procurar a menina dos olhos de todo mundo.

Eu nunca vi duplicado, como pensam que os estrábicos enxergam. Mas vivia enxergando tudo meio sem proporção.

A baliza no carro, eu fazia somente se houvesse muito espaço, porque não tinha noção da distância. Errava toda vez que ia colocar água no copo. Não sabia a altura dos degraus das escadas.

Isso tudo passou. Tou agora procurando a profundidade deste olhar, pra dentro de mim. Talvez por isso, o nome deste blog. Perder de vista. Ir até onde a vista alcança e enxergar outros olhares.

Sinto pelos meus irmãos, que agora não estão mais em sintonia com a música. Todos viraram bailarinos.

O pior cego é aquele que não pode ver em profundidade.


terça-feira, 14 de agosto de 2007

Não Jogue Lixo na Rua


O caminhão do lixo passou levando tudo o que via pela frente.
Varreu as cadeiras nas calçadas,
Recolheu os sorrisos e arrancou a esperança das mãos.
Os garis não passavam há semanas naquelas ruas. Chegaram com pressa.
A vibração do motor do caminhão fazia estremecer os barracos.
- Desliga a televisão, menino! Vem ver o lixo que chegou!
A criançada tomou logo o posto de abre alas do cortejo. Os mais velhos abriam as janelas.
Era um evento. Raro.
Todo mundo queria chegar perto da carga. Haveria lá dentro alguma coisa de valor, um engodo de fantasia. Uma boneca, uma cadeira, um rádio, quem sabe!
E como eu ia contando, o caminhão do lixo coletou mais do que deveria.
Passou sem cuidados pelos cachorros que latiam assutados com o alvoroço.
Levantou a água espessa das poças de lama da rua.
O vento de agosto, beira-rio, trazia aquele odor azedo.
A comunidade do Coque já viu muita gente ser morta.
Faca, foice, pedaço de pau, espingarda, revólver, estilete, punhal, faca de cozinha.
Mas nunca, nunca ninguém tinha visto um anjinho ser mandado pro mundo de Deus por um caminhão de lixo desavisado, que fez uma manobra enquanto um bando de meninos festejava por perto.
A festa do funeral.
Quando a sujeira toda saiu, ficou aquele corpinho franzino, numa viela que leva ao Rio Capibaribe. O chão úmido acolheu o pequeno, aconchegou seu suspiro.
A noite passou. O sol trouxe a má notícia.
A imprensa chegou antes do IML.
E apesar de todo o aparato, três linhas contaram a história no dia seguinte.
Uma fatalidade.
E a rua limpa.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Solidão no Coletivo



Morei em Paris. Isso é inesquecível.
Depois das primeiras semanas de admiração, e até mesmo de sensação de estar vivendo um verdadeiro conto de fadas, comecei a viver outra fábula.
A de passar pelo arco do triunfo e me parecer o marco zero do Recife; ver a Tour Eifell como mais um elemento natural da paisagem...
Eu estagiava na Sala Richelieu, no coração da cidade luz. Almoçava diariamente no refeitório da Comédia Francesa, tendo como paisagem os jardins do Petit Palais. Tudo isso é maravilhoso e inesquecível, mas virou rotina.
Todos os dias impreterivelmente às cinco da tarde eu saída do teatro, ia pro ponto de ônibus com a minha Carte Orange, totalmente integrada àquele sistema. Quando tinha um dinheirinho, tomava um sorvete na Hagen Dazs, que fica pertinho dali.
Pegava o ônibus 95, que ia me deixar na Gard du Nord. Eu estagiava no cartier chique e morava na banlieue, a periferia.
Perfeita vivência.
Os ônibus neste horário estavam invariavelmente cheios de crianças de todas as idades. Os carrinhos de bebê ocupavam espaços reservados junto às portas. Os mais velhos traziam suas mochilas às costas. Tudo ficava meio barulhento.
Todos os dias também eu percebia uma presença nada comum. Cabelo muito branco que fugia um pouco à touca de tricô arroxeada, um sobretudo azul claro muito, muito grosso. Ela também usava meias de lã escuras e tinha sempre um saquinho plástico na mão. Uma bolsa preta pequena, tipo carteira, que aparentava muitos anos de uso pousava no colo. Aquela senhora francesa estava em casa.
Não ficava em casa fazendo tricô, nem muito menos ia aos cafés encontrar os amigos.
A cada dia, ela escolhia um "parceiro" de conversa.
Com sua voz já meio falha, rouca e bem fraquinha, dava pitaco sobre educação das crianças. Com propriedade, falava sobre a mudança dos tempos.
Tinha mãos firmes. Caminhos azuis desenhados em alto relevo nas costas das mãos falavam tanto quanto as linhas da vida que se revelam pros ciganos. Seus gestos eram lentos.
E eu, estrangeira quase adaptada, aproveitava aquele momento para treinar e testar minha capacidade de compreensão na língua bastarda. Era bom compreender as conversas corriqueiras. Eu nem sentia vontade de falar.
Deixei de tomar o sorvete pra não perder o ônibus.
Procurava chegar mais perto dela a cada dia. Aquela figura comum me encantava.
Até que um dia sentei à sua frente. Ela me olhou e perguntou as horas. A resposta veio com um sotaque carregadíssimo. Claro que a segunda pergunta foi de onde eu era.
Respondi e aproveitei pra dizer que percebia a presença dela diariamente.
Foi o suficiente. Madame me contou que morava no ônibus. Aliás, tinha um apartamento minúsculo na Republique, mas como tinha pavor de solidão, passava o dia inteiro dentro daquele ônibus. Escolhera aquela linha porque gostava muito do itinerário, quase turístico. E porque também poucos imigrantes andavam por ali. Madame era francesa sangue puro. Talvez tenha aceitado conversar comigo pelos meus olhos verdes. Uma licença para uma sul americana, me pareceu.
Ousei e perguntei o que havia dentro do saquinho. Ela sorriu. Disse que eu era observadora. Tinha comida. Uns biscoitos, algum baguete, tomates, queijo. Preferia fazer as refeições na companhia de pessoas. Mesmo que fossem passageiros.
Não sentia solidão no coletivo.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Declaração


Confesso, declaro para os devidos fins. Estou dependente.
Eu até tentei fugir, resisti, relutei.
Tudo em vão.
Ele me ofereceu pela primeira vez. Tudo foi ele.
Falou que era bom, que eu deveria tentar.
Mais uma vez.
Quando eu me arrisquei, ele me deu força. Disse que era exatamente assim.
Eu não tive culpa. juro.
Entrei nesse mundo sem conhecer nada, sem sequer saber os efeitos futuros.
Aliás, não existem efeitos prévios. Todos são póstumos mesmo.
Aí, a cada vez que eu tento novamente, ele aparece.
Parece que sabe.
E lê as coisas que eu escrevo, quase em primeira mão.
Aliás, acho que ele é o meu único leitor assíduo.
Nome de poeta, conhece tão bem o traçar das letras !!!!
Sem contar que em algum lugar, somos irmãos. Nomes invertidos, desejos díspares, como devem ter os irmãos. Calhou de sermos colegas de profissão. E calhou de eu me apaixonar pelos escritos dele. E, sendo mais velha, me sinto como uma caçula afagada, aprovada a cada recadinho que ele deixa aqui neste meu território.
Não bastasse, meu primeiro fruto tem o mesmo nome dele. Hoje eu sinto tanto, tanto orgulho de chamar meu pequeno e estar ao mesmo tempo, evocando nossa amizade....
E que se revoguem as disposições em contrário.

eu, menina




O olhar tão leve, que quase não existe. Um sorriso sem muita expectativa de se insinuar. Uma feição tímida, pensando ainda no que seria a vida. Lembro do dia desta foto. Eu tava de férias, na casa do meu avô materno. Sentada na mesa enorme, desenhava qualquer coisa no meu caderninho. Meu tio veio, sentou ao lado, ajustou a lente e registrou meu olhar infantil. Aliás, ele foi mais além. Ele capturou minha atmosfera de menina.

terça-feira, 24 de julho de 2007

Lembrai-vos


Móveis mofados não contam histórias, mas guardam em seus arranhões, em seus tampos desgastados, em suas estampas desfiguradas, a época em que viveram.
Tenho uma obsessão por móveis antigos. Minha rinite alérgica não é obstáculo.
Gosto do conforto, da sensação de estabilidade.... parece que o passado era assim.
Refuto os guarda-roupas contemporâneos, de aglomerado, vendidos em série, em crediários a perder de vista. Antes ainda do fim do pagamento, caiu uma porta, deslocou uma prateleira.
Pois foi numa destas minhas “revistas” ao brechó que conheci as duas. Não sei seus nomes. Nunca vi seus rostos.
Mas dividimos um momento de intimidade.
Estava na avenida Caxangá, zona oeste do Recife. Entrei em uma das suas lojas de móveis usados, somente pra ver se encontraria alguma coisa interessante. Corri a sessão das cadeiras, entrei nos labirintos dos biombos, me encantei com as penteadeiras.
Foi então que vi no cantinho, esquecida, escondida, uma máquina de costura Singer. O móvel me lembrou o tempo em que a máquina da minha mãe era a trilha sonora das tardes. E ao final, sempre vinha um vestido novo, uma saia reformada... “roupa nova de dono antigo”, ela brincava. Lembro quantas vezes fiquei olhando aqueles pés de ferro, com desenhos rebuscados, enquanto ela finalizava uma bainha pra eu provar.
No brechó, o encontro me foi familiar. Cheguei perto, como quem quer conquistar a confiança de um filhote. De forma atrevida, abri a primeira gaveta. Dedais antigos estavam bem arrumados ao lado de retroses coloridos. Algumas tesouras já gastas também se apertavam no compartimento estreito.
Meus olhos brilharam. Porque entregar em um brechó uma máquina de costura completa, como um apartamento que se aluga mobiliado???
Agora, já meio ofegante, abri a gaveta do outro lado. E lá as encontrei. Estavam impressas em um papel de caderno simples, numa caligrafia em letra azul muito arredondada:

“Minha filha, mande por seu pai a calça azul para eu fazer a bainha. Seu aniversário é quarta-feira e eu não posso comprar presente, mas pelo menos você poderá vestir uma roupinha nova. Você vai trabalhar ou poderá vir almoçar conosco? Envio também o remedinho do meu neto, como você me pediu.
Com amor, sua mãe”.


Do outro lado da folha, estava a resposta, numa letra mais apressada:

“Mãe, segue a calça azul. Obrigada pelo remédio. Ele já está bem melhor. Vou trabalhar no dia do meu aniversário, mas no domingo almoço com vocês. Triste esta vida de morar tão longe, mãe. Beijo você e meus irmãos”.

Pronto. O resto desta história sem nomes nem datas, eu não sei. Também não sei há quanto tempo o pequeno pedaço de papel pautado esperava por um leitor.
Pensei em levar comigo o bilhete, mas não me senti merecedora.
Dobrei-o e novamente coloquei na gavetinha da máquina de costura Singer.



quinta-feira, 12 de julho de 2007

Meu quarto de criança


O meu quarto de criança tinha pouco de infância. Duas caminhas encostadas nas paredes, um móvel baixinho entre elas. No lado oposto, um guarda -roupa legal.
Eu sonhava em fazer cortinas cor-de-rosa, pintar uma parede...
Tinha poucas bonecas, e as guardo até hoje.
Na parede branca, imensa, uma gravura colorida do Snoopy era,acredito,
a única referência ao mundo infantil.
Por muito tempo acreditei que o meu universo era pobre pela falta de elementos materiais que ilustrassem meus espaços.
Depois de já adulta, compreendi que os meus espaços internos eram vastos. Campos imensos.
No silêncio externo e no barulho do meu imaginário, eu olhava aquela imagem contemplativa. Me identificava com ela. Criança, quietinha, caladinha, olhando pro céu infinito e com um emaranhado de pensamentos e sentimentos em formação, como células que se reproduzem aleatoriamente.
Não é que hoje eu encontro esta imagem na Internet, que me remete ao meu quartinho lá na praia de Pau Amarelo?

terça-feira, 10 de julho de 2007

LAMA


Um corpo que se move pelo tapete de lama do Capibaribe. Vai à lama como um guaiamum que busca o seio da vida, sendo a areia molhada e infectada seu habitat. É acolhido pelo braço da maré baixa. Um corpo menino, olhar de quase-bicho, se esgueirando pelo mangue.
Vejo as imagens brutas pela tela da TV, fria reprodução do mundo lá fora. Dentro da minha ilha, clima gélido, sinto o coração tremular. Play, pause, stop. Como escolher as melhores imagens do momento em que uma criança é escorraçada?
O menino agora tem o corpo todo da mesma cor. Braços e pernas brilham. Uma segunda pele revestiu o corpo de cinza. Suas roupas absorveram a areia molhada. Parece-me um super-herói. Um mutante. Um andróide. Suas vestes cibernéticas, imunes às pedradas que voam das margens, como meteoros carregados de ódio.
Palavras fortes, num idioma excludente, são fabricadas pelos que mantém o domínio da vida na calçada do cine São Luís.
Sigo examinando as imagens. O câmera faz um zoom e consigo finalmente perceber o olhar de pavor. Ele não tem mais de 12 anos. Vira a cabeça para trás e confirma que está fora da linha de fogo. Os lanceiros são homens e mulheres bem vestidos, cabelos bem cortados, bolsas apertadas ao corpo, carteiras resguardadas. São adultos fortes, covardes.
Entre Aurora e o Sol. Os cais são como Terras proibidas. Não há vestígio de aconchego. Resta a enlameada mão/mãe do Capibaribe. O cartão postal às avessas é a rua que tem o nome do nascer do sol.
Naquela tarde, à hora pouso, uma figura humana, um menino franzino, avorou-se em sair da lama. Uma linda imagem em contra-luz, contraste de cores pardas. Choque social.
O Câmera encontrou um furo. O repórter, talvez conquiste um prêmio com o flagrante.
À beira deste ecossistema, uma fábrica de meninos, que nem sempre viram homens. São assolados tantas vezes pelo mal do extermínio....Nascer já é um privilégio. Vacinados contra o direito universal, sobrevivem aos primeiros anos quase por acaso, talvez por pura teimosia. Marginais do rio-paisagem, não vivem. Teimam.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Sinhá Moça


Eu sou do tipo que chora vendo filmes. Do tipo que se emociona com as festinhas da escola dos meninos. Sou ainda mais piegas, acredite.
Mas, espere um pouco. Não sou tão simplória quanto você está pensando.
Às vezes penso de que raça sou mesmo. Da raça humana, gênero feminino.... da espécie que se emociona demais. Aliás, tudo está à flor da pele.
Não sei qual foi o dia em que chorei de alegria pela primeira vez. Só sei que depois desse dia, o riso está cada vez mais raro. Choro de tristeza e de alegria. Choro pela infelicidade e pela felicidade da vida!
No final de tudo, qual é o problema de eu chorar vendo a novela das seis? Sinto-me como minha avó. Nas férias, eu viajava pra casa dela e achava lindo vê-la lendo aqueles romances que sempre tinham nome de mulher: Sabrina, Júlia, Bianca. Ela não me deixava ler. dizia que havia cenas muito fortes pra uma mocinha. Mas no final do dia ela sempre me contava o que acontecia. Podia ser uma jovem triste que conhece um homem em um navio, mas ele é casado. Podia ser a história de uma mullher casada que era muito maltratada pelo esposo e se apaixonava pelo don Juan do lugar. Ele tb se apaixonava por ela. Mas tinha que provar que seria fiel. Ah....Mais tarde, quando estava mais velha, ia no armário da minha avó e lia pedaços dos romances.Era uma bebida rara que eu provava sem pressa, mas com um sabor irresistível de estar transgredindo uma ordem. Se ela sabia, nunca me disse nada. Talvez ela mesma tivesse começado a ler estes romances enquanto a mãe dela tomava banho, ou ia à feira.
Lembrando de tudo isso hoje, eu penso que minha alma de mulher encontrou seu caminho emocional por aí. E neste mundo em que vivo tão masculino, tão imediato, tão cartesiano, ver Sinhá Moça pode representar um prazer enorme.

Voam os pensamentos

Quero meu piano de volta.
Nele, enrolar meus pensamentos.
perder de vista o real
sem realizar miniaturas de projetos

catalogar meus sentimentos
montar um castelo de mundos.

Entre os dedos eu queria tanto ainda ver passear
as composições alheias
que eu adotei
cuidei
ninei
alimentei

pelos meus ouvidos
entram as minhas notas
como sonhos
bons

horas a fio
doem as costas
reclamam os dedos
foge a mente de mim.


Horizonte

 Pausar.  Simples e necessário! Tempo restaurador. Arrumar as gavetas da cabeça, acariciar a alma, alentar as dores, afagar os prazeres. Fec...