quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Euforia



Havia uma certa arrogância na forma como ela usava aquele perfume francês. Uma displicência, ou seria um desleixo... Anos a fio usando o mesmo perfume, de domingo a domingo, na tentativa de imprimir uma personalidade, uma marca. Triste objetivo!

Pra dentro, lá no fundo, ela sabia da sua insegurança. Tinha medo de falar, de expor as ideias. Tinha medo da própria alma de artista que, de quando em vez, escapava e se anunciava pela boca. Mas a voz parecia agarrada na garganta, perdia a potência a cada vez que ela falava de si. Era tanta dissimulação que às vezes nem ela mesma sabia o que estava vivendo. Quando tentava falar, as mãos gelavam instantaneamente. Melhor não.

Havia uma certa arrogância, sim, de creditar ao perfume Kalvin Klein, francês (como é isso mesmo???), um traço da sua personalidade. Essa coisa imaginária, que um produto qualquer que seja, possa te traduzir.

A arrogância da imaturidade, que teima em rotular. Quem tem rótulo é perfume, aliás. Gente não deveria ter. Aquele vidro sinuoso, que lembrava o símbolo do oito deitado, do infinito, era a imagem da sua prisão. Infinita. Uma prisão de prata e com o líquido lilás. Uma prisão que aumentava à medida em que o conteúdo do frasco se esvaía. Evaporava junto com a sua certeza.

Pensando bem... não era “certa arrogância”.

Era pura arrogância. Um extrato concentrado.

Só que travestida de elegância, fantasiada de alma minimalista. O nome do tal aroma? Euphorie. Traduzindo: Euforia.

Euforia.

Atitude, sentimento, saída de emergência para os corações inquietos.

Euforia, a alegria superficial.

No seu dicionário, euforia poderia ser definida como escudo. Um estado de alma para quem vivia em estado de sítio.

Por décadas, o aroma chegava antes dela. Era sol, era chuva... era feira ou casamento. Ela usava o mesmo perfume. Talvez, a única constância no seu estado de espírito.

Colecionava os vidros vazios, de vários tamanhos. Chegou um tempo em que ela nem comprava mais o perfume. Quem viajava pra fora já sabia o presente que deveria trazer. As amigas sugeriam cremes, hidratantes, vitaminas, eletro eletrônicos. “Traz um vidrinho de euforia pra mim?”, ela humildemente sugeria.

Um vidro de euforia. Uma dose modesta, ministrada em borrifadas diárias. Uma droga que talvez sua porção infantil como um super poder.

Até que um dia, o perfume foi ficando pesado. Pesava nas roupas. Uma coisa parecida com uma cola. Foi deixando a euforia da arrogância de lado. O que ela iria colocar no lugar???

Parou de pedir as encomendas internacionais. Uma vez pediu uma caixinha de música que tocasse “What a Wonderful Word”. Meio esquisito...

Passou a usar o perfume somente quando saía pro trabalho, “pra economizar”. Sentia nas suas roupas guardadas, repentinamente, o toque meio adocicado e aquilo em algum lugar alfinetava. A arrogância persistente do aroma trazia um incômodo profundo.

A sensação de nunca sair do lugar.

Deixou acabar o último exemplar do estoque. Uma coisa qualquer não fazia mais sentido.

Ficou sem cheiro. Passou a sentir seu próprio cheiro, aliás.

Era muito novo.

Sem contorno.

Seria ela?

Foi na farmácia da esquina e comprou uma lavanda. Gostou de usar em plena luz do dia uma lavanda tão comum. “É ótima pra ir à feira”, ela definiu.

No dia seguinte, acordou e quando já ia saindo pro trabalho, da porta, voltou. Olhou pro vidro de  euforia vazio. A coleção de vidros inúteis na penteadeira, como um memorial da sua vida.

Foi ali no armário do banheiro, abriu o frasco de plástico transparente esverdeado e aplicou no cangote, nos pulsos e depois esfregou as mãos uma na outra. O mesmo gesto repetido por décadas. O mesmo gesto mecânico.

Quem vai me rotular agora?

Estava sem o escudo... ou seriam as muletas?

Deu os primeiros passos desconfiada. Foi experimentando outras essências. Foi brincando de cheirar, de sentir. Eram outros tons e cores e notas.

Um dia, como se nada mais fizesse sentido, pegou um saco grande de lixo, aqueles de plástico fosco preto, colocou todos os vasos vazios. Embalagens e rótulos de um tempo vivido. Deu um nó e levou pra área de serviço.

“Amanhã passa o lixo e levo lá pra fora”, pensou quando fechou a porta da cozinha. Tanta coisa guardada por tanto tempo, tanto tempo guardando tanta coisa! Ela tentava afugentar o trocadilho infame do luxo e do lixo. Do lixo luxuoso...

Não havia euforia na sua atitude. Sua busca mais profunda começara naquele instante. Seria preciso ter faro e sensibilidade para as novas fragrâncias da vida. É preciso achar um perfume menos forte pra identificar onde cheira mal.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Existir

 Bom dia, algoritmo. 

Bom dia, minha bolha. 

Eu hoje sou uma bolha estourada, 

Uma ferida em carne viva. 

Violação é uma expressão que acompanha, uma sombra. Corpo, mente, alma, sentidos.

Violação é um medo que paralisa. Em casa, na rua, nas redes.

Violação é uma dor que nos move.

Violação é um estigma. 

A não dignidade.

A não integridade.

Esta dor que nos atravessa séculos a fio.

Nosso corpo permitido 

Nosso corpo proibido

Nosso corpo coisificado

A infância, a violação.

O crime culposo não tem criminoso. 

Só a vítima e sua culpa por existir.

domingo, 1 de novembro de 2020

Sobre bruxaria

Eu sempre digo que a minha bruxaria maior está em um caldeirão fumaçando na cozinha.

A alquimia instintiva, investigativa e interativa que existe entre o alimento, as minhas mãos e o fogo. Tenho queimaduras de estimação, cicatrizes desta parceria.
A bruxaria que transmite pelas panelas o afeto, a cura, a mensagem.
Escrevo em pitadas de pimenta.
Faço versos em porções.
Assim como na cozinha, um pouco sem métrica.
Foi na cozinha que voltei a escrever, a imprimir minha poesia.
Meus cadernos de receita que pouco ensinam a cozinhar, falam das sensações.
A inspiração se empresta, em mim, tanto para a poesia quanto para a cozinha.
Que bruxa esquisita eu sou!
Ontem passei o dia ouvindo a cozinha me chamar, mas estava em outras paragens.
Isso, não sou somente eu que quero a cozinha. Ela me solicita também.
Não sei se alguém vai entender, mas também posso cozinhar mentalmente. Combinar sabores, considerar novas maneiras de tratar os ingredientes... bruxaria mesmo.
Quando cheguei em casa, já à noite, tirei da geladeira o levain, aquele tal de fermento natural, que eu tenho a alegria de cultivar.
Aprendi a conversar com o fermento natural. Não pasmem! Cabe este tipo de procedimento nos meus feitiços. Aprendi o tempo dele. Porque ninguém cozinha só.
Observar o fermento se alimentando, perceber a hora certa de misturar com a farinha de trigo é das mais altas bruxarias. Sentir o tempo da fermentação, respeitar a temperatura ambiente. E tirar da mistura de água, farinha, fermento e sal um dos mais ancestrais e simplórios alimentos.
Então... hoje pela manhã acordei e fui ver o pão que fermentou a noite toda.
Tava lindo!
Que presente de domingo!
Coloquei numa panela de ferro pré aquecida e lever ao forno. Primeiro, ele cresce. Aí você abaixa o fogo. Depois, aquele perfume de pão invade a sua casa. E ele fica douradinho... crocante por fora e macio por dentro.
É o fogo que transforma,
É o calor que alimenta,
O alimento que cura.
É a minha homenagem a todas as mulheres que cultivam suas bruxarias.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

bom dia!

 

O dia amanhece, como sempre. Mas nunca é igual. Cada dia, uma luz diferente, uma sombra se insinua, uma marca é deixada. Cada dia, um X no calendário. Um aviso de passagem do tempo. Um lembrete de finitude.

O dia amanhece como há milênios. Nada mais secreto do que o involuntário. Nada mais misterioso do que o ciclo finito. Cada existência, um universo distinto. Cada café da manhã, na mesma xícara, o mesmo pão assado e tantas sensações inéditas.

O dia amanhece invariavelmente. Não importam as noites insones. Não vale apelar para os sonhos. O dia é esta força tarefa entrando pela janela, é esta invasão de horizontes no seu pessimismo. O dia imperioso e inevitável.

O dia amanhece e não espera por ninguém. Empurra a noite, rouba a lua cheia. Traz consigo galo, passarinho cantando. Acorda as buzinas dos carros, enerva os despertadores, multiplica os engarrafamentos.

O dia amanhece, sempre, até anoitecer.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

carta a Clarice e João

Clarice e João,

 

Escrevo esta carta num agosto esquisito. Um agosto de poucos ventos. Um agosto de poucos sonhos. Os ventos nas pontes não encontram as saias, ou os chapéus para brincar. Os ventos nas pontes passam sem a levada dos barcos que buscam a beira do mar.

Escrevo da sala da minha casa, o mesmo vento entra remexendo nas plantas e no meu cabelo. O vento mais fresco e instável de agosto no Recife. O Recife mais instável no agosto pandêmico.

Esta cidade que vocês descreveram, moeram e expuseram as belezas e as entranhas. A mesma cidade da tua infância, do Bonde que levava pra praia em Olinda, Clarice. A mesma cidade do teu cão sem plumas, João. A mesma Veneza brasileira, a mesma capital da geografia da fome.

Somos moradores da mesma cidade em tempos desencontrados. Andamos pelas mesmas pedras. Passeamos pelas praças de sempre. Costuramos pelo centro, nas ruas tontas e tortas da cidade orgânica. Peço até desculpas por tanta intimidade, chamar vocês dois pelo primeiro nome... assim como se fôssemos vizinhos.

Nunca tomamos café na varanda, ou nos esbarramos na padaria da esquina. Mas levo no meu coração a nossa cidade como um relicário. Algumas das memórias, construí com as linhas que li assinadas por vocês.

Me pergunto se vocês amariam o Recife de hoje. Seus encantos decadentes, seus arranha-céus emergentes, empatando o sol, espremendo a lua. Boa viagem com sombra na areia, o centro histórico resiliente, os espaços públicos de ninguém.

Já te visitei na sua casa, Clarice. Persegui seus passos pela Boa Vista velha, os postes iluminando à meia luz os passeios vespertinos. Já sentei do teu lado na Praça Maciel Pinheiro.

Sim, na frente da casa que você morou hoje tem uma escultura tua. Linda, por sinal. Você na sua serenidade lendo em frente ao chafariz. Com o olhar poético, é lindo de ver. Triste é ver com os olhos do real. O sobrado que você morou tem uma placa já bem desgastada contando a tua história brevemente. Quase não conseguimos mais ler. O sobrado? Lembra que ele praticamente inaugura a Rua do Aragão? Pois bem. O sobrado é quase uma ruína. Eu fecho os olhos e tento imaginar todo aquele casario décadas atrás. A comunidade judaica chegando, transformando. Os pianos ressoando das casas, num leva e traz vivo. A rua da imperatriz se entregando ao Rio no final, os passeios e matinés.

Rio, aliás, cantado por João Cabral.

João, te conheci em Toritama. Aquela cidade Agreste pra lá de Caruaru. Fiz a travessia com teu livro nas mãos. Severinos com nome de pia. Todos filhos da mesma miséria. Não sou mais ou menos pernambucana por conhecer onde passa o nosso Rio. O batismo se dá nas venturas e desventuras dos que ali manejam a vida.

Você talvez não acredite, de tão surreal, mas houve algumas vezes em que o Capibaribe, lá na antiga cidade de Torre, foi tingido de blue jeans. As lavouras viraram lavanderias, João. As lavradoras são costureiras de facções. A mesma vida Severina. O rio castigado seria o personagem principal do teu poema. Agonizava árido de peixes, vazio de árvores.

Contigo, João, prefiro bater papo ali na Aurora. Do lado de cá da Rua do Sol, tendo o Teatro de Santa Isabel de fundo. Você, plácido, sentado naquele passeio. Outro dia acordei e saí correndo pra lá, pra saber como você estava. A notícia triste era que tinham riscado a tua imagem. E você olhando pro Capibaribe. O mesmo Capibaribe que acolhe os meninos chiés, os homens guaiamuns, as mulheres aratus.

Aliás, João, os Severinos e Severinas moram, muitos, por aqui. São corpos que se movem pelo tapete de lama do Capibaribe. Vão à lama em busca o seio da vida, sendo a areia molhada e infectada seu habitat. São acolhidos pelo braço da maré baixa. Outro dia, fui testemunha de uma cena na frente do cine são luiz que poderia estar em um de seus poemas.

Era um corpo menino, olhar de quase-bicho, se esgueirando pelo mangue. Vi as imagens brutas pela tela da TV, fria reprodução do mundo lá fora. Dentro da minha ilha, clima gélido, senti o coração tremular. Play, pause, stop. Como escolher as melhores imagens do momento em que uma criança é escorraçada? O menino agora tem o corpo todo da mesma cor. Braços e pernas brilham. Uma segunda pele revestia o corpo de cinza. Suas roupas absorviam a areia molhada. Parecia um super-herói. Um mutante. Um andróide. Suas vestes cibernéticas, imunes às pedradas que voavam das margens, como meteoros carregados de ódio. Palavras fortes, num idioma excludente. Eu, no meu ofício jornalístico, segui examinando as imagens. O câmera fez um zoom e consegui finalmente perceber o olhar de pavor. Ele não tinha mais de 12 anos. Virava a cabeça para trás e confirmava que estava fora da linha de fogo. Ou de pedras. Os lanceiros eram homens e mulheres bem vestidos, cabelos bem cortados, bolsas apertadas ao corpo, carteiras resguardadas. Adultos fortes, covardes.

Entre Aurora e o Sol.

Os cais são, desde sempre, terras proibidas. Não há vestígio de aconchego. Resta a enlameada mão/mãe do Capibaribe. O cartão postal às avessas é a rua que tem o nome do nascer do sol.

Naquela tarde, à hora pouso, uma figura humana, um menino franzino, avorou-se em sair da lama. Uma linda imagem em contra-luz, contraste de cores pardas. Choque social. O câmera encontrou um furo. O repórter, talvez conquiste um prêmio com o flagrante. À beira deste ecossistema, uma fábrica de meninos, que nem sempre viram homens. São assolados tantas vezes pelo mal do extermínio....Nascer já é um privilégio. Vacinados contra o direito universal, sobrevivem aos primeiros anos quase por acaso, talvez por pura teimosia. Marginais do rio-paisagem, não vivem. Teimam.

 

E nada do que escrevo é novo, João. Nada do que sinto é inédito, Clarice. Construo diálogos e envio cartas através do tempo. Olho as pistas da cidade, encaro suas feridas abertas e sua poesia marginal. Uma muralha que se constrói a cada dia.

 

Esta carta, garrafa jogada ao mar para o passado, rezo através das décadas, quiçá chegará até vocês. O não-tempo mora em algum endereço.

 

Vou qualquer domingo desse te convidar pra ouvir Chopin aqui em casa, Clarice. Umas valsas, talvez um vinho... E te contarei quando eu, mocinha e moradora de Olinda, vinha para o Recife comprar tecido e aviamentos para meus vestidos.

Ou ainda antes, no sobrado da estrada do encanamento, quando a água viva do Capibaribe decidia nos visitar. Entrava sem bater. Subia mais de um metro. A gente salvava o que podia... Havia poesia nas cheias. Há poesia nos desalentos.

 

Encaminho neste envelope imaginário, um resgate do Recife. Aquele meio lírico, meio cruel. Aquele meio menino e meio caranguejo.

 

Meio lama, meio mar. Assim, como a vida. Assim como a poesia e a prosa.

 

 

Com amor e saudade, Germana.

 

 


domingo, 11 de outubro de 2020

O menino maior que eu


O menino chegou neste mundo. 

Veio no meio do calor, chegou com o sol a pino

Chegou meio apressado, antes mesmo de o relógio apontar. 

Uns diziam: é cedo.

Outros diziam: tão nova!

E ele chegou.

Meus braços, meu peito, meu colo. 

O menino veio à luz.

Olhinhos pretos, feito ônix.

Cabelinho louro, feito milho no terreiro.

O menino primeiro.

O menino chegou neste mundo.

E cresceu junto com ele. 

O menino ficou maior que eu.

E hoje faz 26 anos que eu conto esta história.

Quiçá, a contarei pelos meus dias.

O menino trilhando seus caminhos.

O menino borda, tece, desenha

Seus versos mundo afora.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

ÁTIMO

Tempo. Unidade volátil.

Tempo. Vacina poderosa.

Tempo. Óculos de grau.

Tempo. Calmante da alma.

Tempo. Anúncio do futuro.

Tempo. Contador da história.

Tempo. Cantador do presente.

Tempo. Companheiro de caminhada.

Anos são segundos. Séculos são átimos.




Foto Yane Mendes


Qual é o seu tempo?

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Cheguei

"Alguma coisa ali adomingava a alma" A frase de Valter Hugo Mae, no livro "A desumanização", me trouxe de volta. 
Sim, de volta. 
Passei dias sentindo uma necessidade de recolhimento que nunca senti antes na vida. 
É como se eu precisasse não ser. 
Não estar. 
Não chorar. 
Não rir. 
Um tanto faz de coisas e sentimentos...
Uma sensação de entalo.
Uma viagem pra dentro com longas paradas.
Um medo de não saber voltar.
Foi lendo "A desumanização", tão denso quanto a vida, que voltei a olhar pra fora de mim. 
Hoje minha alma me acordou antes do amanhecer. 
Me chamou pra respirar. 
Me convidou para voltar a ver poesia na desordem da pia da cozinha.
Tirei da geladeira manteiga e ovos. Enquanto degelavam, eu lia na temperatura ambiente. 
Bati a mão o bolo de laranja sentindo seus aromas. 
Sentei ao lado do forno, livro na mão, e aguardei pacientemente o ponto. 
O livro falava de vida e morte. 
O bolo foi crescendo e dourando.
Lindo. 
Vocês precisavam ver. 
O processo de cozimento igual à vida.
Deixei esfriar. 
Tirei do forno antes do timer avisar, mas estava pronto. 
Fiz uma calda de laranja com seus gominhos e vesti o bolo, como quem envolve o corpo num echarpe de algodão.
Tudo é alquimia. 
Aos poucos fui chegando aqui. 
Viagem longa. Quando sentei pra tomar um café o sol ja entrava forte pela janela da sala. 
Os meus pés no chao de taco, fincados no hoje. 
Cheguei.

terça-feira, 7 de julho de 2020

colo do tempo




Sentei no colo do tempo, pedi um cafuné.
Acomodada nos seus joelhos.
Pedi pra ele contar histórias de mim, pra contar as verdades e as mentiras que eu acredito.
Como uma avó amorosa, que transforma pedaços de bolo em fábulas.
Que reforma vestidos antigos.
Que aconchega.
Eu estava aboletada.
Eu, minha criança e tantas outras faces, todas sentadas ali.
Sentei no colo desta deusa e pedi uma trégua.
Sentei no colo do tempo.
Pra sentir melhor as transformações.
Pra olhar pra dentro.
Pra acalentar a infância que nunca termina.
Sentei no colo do tempo, pedi pra me ninar.
Sentei no colo do tempo e finalmente conciliei o sono.
Sonhei que estava no seu seio.
Alimentei meus desejos. Afaguei meus sentidos.
Sentei no colo do tempo na esperança de parar.
Mas ele me levou consigo.

sábado, 6 de junho de 2020

Coração de poeta

Faz dias que as teclas me cobram um texto. Há dias que a cabeça rumina. São frases, são dores. Escrever sobre uma dor que é maior que todas. Escrever como mãe.... escrever como mulher. Escrever como militante... escrever como poeta.
Esta última é a alcunha mais difícil de carregar. De todas, a que não está estampada no meu corpo nem nos meus gestos. De todas, a que melhor se posiciona, de todas, a mais invisível e a mais contundente das minhas personas. De todas, a mais visceral.
A mãe sabe onde pisa. A mulher, aprende novos caminhos. A militante, traçou suas convicções. A poeta, transita entre todas. Se ressente, se emociona, se desmancha e se refaz. A poeta não tem estratégia, não tem certezas. É carne viva se construindo. Não tem métrica, nem rima. Uma rama que se esgueira por entre os espaços, que fixa suas raízes e se contorce.
Faz dias que meu sangue envenenado pelo ódio alheio, pelo descaso e pela injustiça segue por veias aleatórias, como quem vaga por uma rua escura numa cidade vazia.
Um poema atravessado pela dor do mundo. Uma semana esculpida pela violência, mapa astral tenebroso de um tempo.

#Justiçapormiguel

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Carta ao filho caçula, adulto II

Filho,

Amo tanto esta foto! 





Seu primeiro ano de vida, eu agarradinha em você, sua mãozinha acarinhando meu rosto... e os dois olhando pra frente. De testemunha, o infinito mar...
Vejo nós dois com expressões de alegria. Um relicário, esta imagem...
Hoje você faz 22 anos.
Que data rica em possibilidades, em caminhos e em vida!
Como a gente já tem história pra contar!
Diariamente construindo um laço cada vez mais firme, seguro pelos fios da confiança e do amor.
No seu nome, eu trouxe a luz. Luís.
É hora de estar ao seu lado, assistindo a sua caminhada.
A vida, meu filho, está nas suas mãos.
Persiga seus sonhos. Insista neles. Acredite, sempre. Sonhos são ótimos combustíveis. Mas ouça também suas intuições. Mantenha os olhos abertos.
Você tem a estrada iluminada pela frente. Com todas as lutas, conquistas e histórias a construir.
Cuide de quem você ama, mas sobretudo, cuide de você.
Eu estarei sempre no mesmo lugar. Braços abertos, mãos solícitas e um desejo imenso de contribuir e ser figurante no teu protagonismo.
A vida vai se insinuando. E vai ser lindo!
Feliz 22 anos e todos os que virão!
Beijo grande meu filho.E minha bênção.

domingo, 31 de maio de 2020

A primeira torta de limão


Não... Não é apenas uma torta de limão.
É a tentativa de unir na existência o doce e o amargo.
É o laboratório de novos sabores num tempo insosso.
É a construção de memórias de prazeres neste calendário aleatório. Todo dia quase tudo igual.
Lá no futuro, lembrarei do último domingo de maio. Na TV, protestos ao vivo no Brasil e nos Estados Unidos.
Na minha cozinha, bato a revolta com ovos e açúcar.
Até quando estaremos "harmonizando" as distâncias sociais?
Até quando o abismo vai ser a fronteira?
Exercito na cozinha a primeira torta de limão.
Nas ruas, polícia.
Nas ruas, cidadãos.
Apoiar a democracia me parece um ato subversivo.
Choro sentindo que ingatamos a marcha a ré...
A torta ficou mais doce que a vida... Queria ter imprimido nela um pouco do amargo...

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Café com pão


Começo meu texto pedindo desculpas. Por ser cada vez mais escriba da vida privada. Por utilizar minhas figuras de linguagem a partir das experiências do cotidiano. Pode parecer a você que quero banalizar o sentimento do mundo, quando faço analogias com o que se conversa na mesa da cozinha...Minha tradução da quarentena.
O borbulho do café subindo na cafeteira italiana  já gasta, antiga e cheia de histórias é o prólogo, quase sempre. A gente senta e divide. Cada vez a cafeteira fica menor... é esta a impressão. Repetimos a operação e enchemos mais uma vez as xícaras. Não são confissões. Não são confessionários. Às vezes é silêncio. Às vezes, cada um pega sua xícara e segue para o seu canto, seu mundo. O aroma perfuma a casa e a gente se irmana nestas ondas.
Há sempre a possibilidade de um café.
O confinamento nos traz um olhar pra dentro, mas tem a dor do mundo todinho morando na sala de estar. E conversamos sobre o que aparece na TV, sobre o mundo talvez melhor um dia. Sobre política. Falamos sobre o gato, o cachorro. Sobre a chuva e o calor. Sobre You tube, sobre o passado.... sobre acalmar a mente e esperar.
Olho pra um dos filhos. O mais velho. Já homem, na comissão de frente da pandemia. Mas vejo nos seus olhos o mesmo tom de vinte anos atrás. Lembrei hoje de quando ele chegava da escola e por ventura eu tinha mudado uma mesa de lugar. Parecia que não era mais a casa dele. Ele reclamava, ameaçava não almoçar. “Quero minha casa de volta”, ele bradava. Eu achava engraçado aquele menino de olhinhos de jaboticaba e cabelo de milho e frases tão firmes. Ele cruzava os braços e sentava amuado num canto da sala. Deve ser a lua em capricórnio, eu divagava. Hoje a expressão é a mesma. Não é mais a sala de casa o cenário. Ele está na UTI Covid. Num posto de saúde na Zona Norte. Sim, filho... tudo está fora do lugar. Desta vez é você quem precisa ajudar a colocar tudo em ordem.
O mais novo, olhos grandes e cabeça no mundo. Lembro que ainda recém nascido dormia melhor quando estava comigo. Nasceu no semestre da minha formatura na UFPE. Fiz a
maioria dos trabalhos finais com ele junto. Editei vídeo, escrevi relatório como uma mãe canguru. Ele está confinado cem por cento comigo. Conversas, xícaras de chá, lavamos louça e cuidamos do lixo. De quando em vez deitamos no tapete da sala e assistimos a programas policiais. Preparamos o ambiente. Almoçamos no chão mesmo. Varamos às vezes a madrugada. Engraçado como a gente tem a essência constante. Quando ele tinha dois anos, fiz uma cirurgia. Ele colocou um monte de brinquedos no meu quarto e ficou ali o tempo da recuperação. Dias e dias. Ontem me deu uma dor nas costas – do peso do tempo que carregamos – e ele repetiu o gesto. Ficou junto, dormiu na rede do quarto. Tô aqui, mãe.
Eu, neste novo ordenamento, me encontro mais aberta para percebê-los. E soltá-los. Perceber os movimentos. Para onde apontam as vidas adultas que nascem em cada um.
Já são dois meses. O compasso deste tempo infinito. O compasso da vida ritmada. A viagem pra dentro.
As lições de privilégio e desamparo na vida afora. Noves fora... estamos em barcos diferentes nas mesmas águas.
Na mesa da sala aprendo a fazer pão. Minha energia toda na sova da massa. O tempo da fermentação. O ponto certo do forno. Um alimento sagrado que serve de repertório de amor. A mente conectada com esta tarefa ancestral.
Esperamos o tempo de abraçar e voltar a sentir o vento no rosto. Enquanto a massa descansa, passo mais um café

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Meditação

OMMMMMMM
No prédio vizinho alguém toca o hino do homem da meia noite.
Ajusto a coluna e foco na respiração
O clarinete rasga a tarde muda
Sente o corpo em contato com o chão
Hoje esqueci de pagar o aluguel
Inspira profundamente
Uma dorzinha de cabeça...
Expira
Nunca mais eu toquei piano
Queixo na direção do esterno
O gato decide morder minhas mãos, em Gyan Mudra
Deixa o pensamento ir
O gato agora decide afiar as unhas no banco do piano.
Segura a respiração por 10 segundos
Olho pro lado e ele está acabando com o estofado, mas olha fixamente para a minha posição de lótus
Solta o ar len-ta-men-te
E a imagem do calunga do bonsucesso aparece.
Cabeça na direção do céu
Amanhã é o aniversário de Dora e depois chega maio. Uma penca de gente...
Foco na respiração e ajusta a coluna
A dorzinha de cabeça se foi
Sente o ar entrando frio pelas narinas
Tomei uma long neck na hora do almoço
Esvazia a mente
Quando eu penso em parar de pensar já estou pensando
Exercita a presença
Lembrei dos meninos quando pequenos
Esse confinamento....
Inspira
.....
Expira
.....
Inspira
.....
Olhos voltados pro nariz
....
Ins..pi..ra
....
Ex..pi..ra
....
Amanhã eu pago finalmente o aluguel
....
OMMMMMMMM

terça-feira, 28 de abril de 2020

Liberdade pra dentro




Nas entranhas. Nestes dias de confinamento, quarentena, isolamento social, distanciamento afetivo, ando entrando em contato com minha geografia interna. Os vulcões da psiqué; os vales das lembranças e memórias; os pântanos das crenças. Montanhas e mares. Lagos com monstros, cascatas imensas....
Liberdade pra dentro.
Eu nunca tinha pensado nisso. Liberdade era, até uns 40 dias atrás, poder ir e vir, pensar livremente. Falar o que pensa. Ouvir todos os argumentos com respeito e escuta ativa. Não é retiro espiritual.
Liberdade pra dentro.
Me parecia que o “pra dentro” era limitado.Isolado, talvez. Eu ignorava solenemente a infinidade de possibilidades do ser. A liberdade externa limitava o estar.
Vai entender.... Não desconectei com o mundo lá fora.
Liberdade pra dentro.
Rendeu algumas noites insones. Pra dentro é revolução nada silente. Você fecha a porta de casa e encontra outros caminhos. Mansamente, imensamente e profundamente, eu dei o passo. Sem GPS. Sem placa indicativa. Sem ponto de referência.
Liberdade pra dentro.
E aquela liberdade antiga, quando voltar a existir? Liberdade pra dentro pra aceitar as convicções e o nosso DNA sensorial.
Liberdade pra dentro.
Liberdade total.


terça-feira, 14 de abril de 2020

SE QUERES SER UNIVERSAL, CANTE SUA ALDEIA (LEON TOLSTOI)




Eu acordo muito cedo e corro para olhar o varal. A calça jeans, mais precisamente. Tinha estendido às 19h. Já percebi que às vezes ela seca, às vezes preciso passar o ferro bem quente pra ela estar prontinha. São umas 6h. Está meio úmida no cós e nas extremidades das pernas. Melhor ajudar a natureza. A noite foi úmida. Não choveu, a propósito. Mas quase sinto a gotas microscópicas suspensas no ar. Sinto a pele que encharca de um suor grudento. Sinto as nuvens densas. Um tipo de algodão doce que eu cortaria com uma faca, de tão sólidas.
Levanto da cama e os pés doloridos, o corpo relutante. Hoje é o dia 28. Quase um mês. As plantas dos pés demoram a aceitar o caminhar no piso de taco. Um ou outro solto. Um ou outro desnivelado. Um ou outro mais claro, mais escuro. Me sobra tempo hoje em dia para pensar nos tacos que cobrem o piso do apartamento. No caminho até a área de serviço. Passando pela cozinha, o piso fica vermelho, uns tijolinhos que já dão sinal de desgaste. Uns, meio desbotados, mais esbranquiçados. Quem olha pra isso? Eu vejo recados do tempo.
Chegando na área de serviço, o varal. Colorido, nossas histórias pingando e cheirando a amaciante. Quarando. Nunca, nunca um varal teve tanto significado. Nunca nossos corpos foram tão bem representados, presos por pregadores de plástico. Ligo o ferro e deixo esquentar. O contato com a calça úmida faz subir um leve vapor. Estado gasoso da água. Devolvo a calça pro lugar que estava pra pegar um ar.
Eu tenho procurado valor em cada gesto cotidiano. Na cozinha, a alquimia do afeto que cura. O sabor que une. A memória do perfume que transporta. Na arrumação da casa, o aconchego. No varal, nossas roupas limpas, a renovação, o “começar de novo”. Esta rotina limitada aos metros quadrados da casa. Eu canto a minha aldeia, num tempo em que o espaço físico-geográfico perdeu seu sentido.
Uma vez por dia abro a porta do apartamento e passeio pelo jardim. Levo Bangu pra respirar. Motor, o gato, fica emoldurado pela grade da janela. Pela tela que tudo envolve. É a nossa rotina. Bangu fareja as flores, come umas folhinhas de cidreira. Eu acho curioso. Onde já se viu cachorro gostar de comer ervas?
Geralmente saímos quando o dono da calça jeans segue pro posto de saúde. Tem dia que o plantão é na UTI.... Banana comprida com canela, queijo assado, inhame, pão com geleia. O café é de lei. Não importa o cardápio. Importa sentar à mesa e trocar umas frases, olhar no olho e abençoar o dia. O meu e o dele.
Os minutos de diálogo à distância. “Não chega muito junto, mãe”. Sem beijo, sem abraço. O meu primeiro menino está no front. Ele segue doce e sereno. Nem sei se é assim somente quando está na minha frente. Não sei se de noite, de luz apagada, ele experimenta outros sentimentos. Eu tenho rezado. E cuidado. E velado. E acreditado. Todos os dias.
Mais tarde normalmente o meu outro filho acorda. Levanta e conta dos sonhos que teve. Fala de história, de política. Enche minhas horas de palavras, de ideias, de novos conceitos. Gosto de chegar perto e deixar a mente aberta. Deixar tudo fluir. São horas contadas em xícaras de chá. A noite, no jantar, procuro agradar ao nosso paladar. Tenho errado, a propósito. Tenho acertado também. Assim, como na vida. E o dia se vai.
Estamos confinados. Fazemos algum esforço pra não pirar. Respeitamos nosso silêncio. E a rotina quebrada, que buscamos alinhavar com o fio da delicadeza.
O tempo passa, invariavelmente. Outra unidade de vida é curtida nos potes da espera.

segunda-feira, 30 de março de 2020

quaresma





Você passa suas toalhas de banho a ferro? Dobra suas toalhas pelo avesso? Prima em dobrar todas iguais e guardá-las por cores ou simplesmente as esconde dentro do armário? Você já tinha parado pra pensar nisso? Eu, nunca.
Mas esta semana eu parei pra pensar. Pensar nisso é pensar nos nossos padrões. Imaginar nossas crenças e o quanto que elas nos (de)limitam.
Eu sou só. Em meio a tanta gente, estou só. Estou me sentindo muito inteira. Mas só. Para os que eu ainda não falei, saibam. Meus dias não estão sendo fáceis. Sair de casa ou ficar em casa não é a questão.
Eu tenho todo o tempo do mundo para escrever este texto, cozinhar, lavar os banheiros, mandar mensagem pros amigos, falar com meus pais pelo aplicativo em vídeo. Eu tenho tempo largo para meditar. Fazer exercícios. E para depurar este momento contemporâneo da humanidade. Me sinto ligada à humanidade por um vírus. E, para continuar fazendo parte dela e que outras pessoas também façam, eu preciso me isolar. O vírus é um paradoxo. O vírus é uma armadilha. Cuidar de quem cuida e de si, mas com a distância regulamentar de 6 passos.
Eu tenho guardado as toalhas, lavado os lençóis periodicamente. cuidado de tudo.... às vezes parece que o globo terrestre pousa nas minhas costas. Em outras, me pareço moradora do vazio. Habitante do Caos.
Abro o guarda roupa e nele há muitas pistas do que hoje é desnecessário. No armário, sapatos para combinar com as roupas. Tudo guardado.
Lembrei da minha avó materna que nos idos de 1920 era adolescente e contava que suas roupas compradas em Paris só eram utilizadas para ir à missa aos domingos. Era o ermo do Ceará. Uma zona rural. Ela, filha do coronel.
Hoje, na metrópole caótica, vejo o quão desnecessárias são algumas necessidades urbanas. Disse outro dia meio sem pensar ao meu filho que precisaria de quatro mudas de roupa pra esta vida de confinamento. Exagerei. Pra cima e pra baixo. Não tenho mais parâmetros. Pela primeira vez, estou sendo impelida a viver o dia. O hoje. O minuto, o instante. A transitoriedade das relações, o confinamento dos desejos. A quarentena dos projetos de vida.
A quarentena na quaresma. Jejum de atividades, de bares, de praia, de praça. Abstinência do social.
E não é o fim.

domingo, 8 de março de 2020

Faz um ano


Sair de casa não é a questão. Deixar pra trás as louças, os móveis, o pau brasil plantado meticulosamente no centro do quintal, ainda filhote, e que hoje está quase chegando ao céu. Você simplesmente bate a porta atrás de si, como talvez tenha feito tantas vezes para ir ao trabalho, ao cinema, ao mercado. Gesto repetido. Fordismo da vida cotidiana, que nos carimba e condiciona.
Sair de casa, este gesto, não é a questão. Tentar, com a pancada da porta imensa, eliminar o passado, claramente, em vão. Saber que é necessário manter-se viva, manter-se ciente, manter-se sã. Não fechar os olhos, não dormir, não baixar a guarda. Ficar ali, consigo. Este é o gesto maior. Sair de uma casa de afetos, de uma construção sólida, mas que sufocava.
Sair de casa, este gesto de socorro. Este pedido de ajuda, este alerta vermelho. Nada importa. Nem as portas. Tudo de mais precioso não valia a vida. As vidas que deixei lá dentro eram os tesouros que eu mais prezei, velei, ninei e acarinhei vida afora. Vida adentro. Noves fora, quanto fica?
Eu saí. Na bagagem, uma mala sem significados. Pequena, vazia. Daquelas que já fiz quando criança, buscando a justa sensação de independência. Não, não foi independência que busquei naquele sábado triste. No último dia da semana lamacenta e esquecível, mas que jaz tatuada na minha alma quente.
Fugi pra não me perder de mim. Desde então, sigo as minhas pistas. Venho me reencontrando com alguns fragmentos, com rompantes de quem eu sou. Fugi com duas malas pequenas. Tive dez minutos para planejar o que colocar nas malas e pra onde ir.
As malas vermelhas foram minha morada por meses. Foi revelador abri-las a cada dia e me descobrir um pouco mais. Numa delas, sabe-se lá por que, só havia roupas íntimas. Mala vazia, cheia de intimidades.
Na segunda, um pouco maior, um coletivo de desencontros. Um arremedo de enxoval para a vida nova. O passaporte para eu ser o que quisesse, combinando o que não se imagina. Análise combinatória.
Guardei o sábado. Eram umas 15h. Não sei se chovia, se fazia sol. Eu parecia um ser unicelular, concentrada numa só missão. Indivisível.
Estou prestes.
Prestes a me lançar no abismo da certeza.
Imagino o salto. Certo. Preciso.
A beleza de não saber onde o vento me fará pousar.
Estou prestes a escolher a direção.
Avulsa, despregada.
O verbo estar não define. Não estou....
Estar soa estático. Soa estabilizado. Soa controlado. Soa cômodo. Soa linha de chegada.
E eu me defino, antes, de partida.
Partida, só que inteira. Para o novo. O salto, lançamento. Vernissage de mim mesma.
Minha inauguração.

Pedi o uber. Liguei pro meu irmão. Um diálogo sem lógica:

-Como é que a gente faz? Faz como?
-Venha pra cá.

O tempo era uma unidade variável, quântica... saí de casa enquanto ele lavava os pratos. Era o gesto dele pra dizer: não acredito na sua ameaça. Você não tem coragem. Ele tirou as malas de cima do guarda roupa, limpou a poeira com a toalha de rosto do banheiro da suíte. Aliás, suíte que não tinha porta, mesmo depois de dois anos de “acabada” a reforma. Eu fui um dia no atacadão e comprei uma cortina de plástico sem estilo. Pedi a porta de presente de aniversário... nada... pois bem, limpando as malas empoeiradas com a toalha de rosto, ele me disse: pode ir. Enquanto você arruma a mala, eu vou lavar a louça.
A louça que ele quase nunca lavava. Que deixava embolar na pia, e, quando lavava, negritava: lavei, viu? Taí, tudo ajeitadinho. E eu, de naif, agradecia....
Tudo pareceu em câmera lenta, mas aconteceu tão rapidamente.
Eu já tinha feito um percurso mental tantas vezes! A saída era uma das saídas pra mim. Dizem que, quando se está sem alternativa, parede vira caminho. Paredes grossas e densas, no meu caso. Sedimentadas com grandes camadas de sentimento. Tijolo por tijolo. Num desenho flácido.
Uma mala simbólica. Significando que não era ao trabalho que eu iria. Nem ao shopping. Que não era a minha sazonalidade que estava à prova. Por mais que inundasse outras vidas, por mais de destruísse os alicerces frágeis dos sonhos a dois.
Fisicamente eu sentia uma dor localizada no esterno, perto do peito, mas que não era exatamente dor. Rasgava. Esgaçava. Abria o peito. Uma dor sem nomeação e sem medida. Sem remédio. Densa. Eu poderia desenhar esta dor. Se fosse geografia, eu seria um tsunami, ou um vulcão. Uma barreira desabando nos morros de Casa Amarela.
Eu não abandonei a casa. Ou os filhos, ou o amor. Eu me salvei. Busquei um plano de fuga, sem treinamento de sobrevivência. Saí me afogando nas lágrimas, saí destruindo as barragens, saí me arranhando. Sem máscara de oxigênio. Estava crua. Em carne viva.
Aos 47 anos, nunca tinha vivido só. Numa casa, num quarto, numa cidade. Nunca tinha experimentado a sensação de acordar e não dar bom dia. A experiência de não dividir o banheiro e de ter a cama inteira pra mim. E escutar o som cedinho na altura desejada. De não ligar a televisão no café da manhã. Quase cinquenta, e jamais amanheci com a casa todinha pra mim...
Dizem, acho que dizem. Que às grandes expansões precedem longas contrações. Regressões. Retiros. Se não dizem, eu digo. Tenho dito e sentido. Para crescer muito, recomenda-se voltar à origem. Assim seja.
No meu êxodo anunciado, voltei ao lugar seguro. Como um filho que devaneia a volta ao útero. Como quem anseia voltar à terra natal. Primeiro, o abraço do irmão. Depois, e refugiei na casa paterna, até que as primeiras dores cessassem.
Foi um parto laborioso, longo, tardio. Verbo e substantivo. Busquei uma caverna segura para me abrigar enquanto as sombras da dor atordoavam o peito, projetavam pra fora fantasmas imensos.
Quando saí, olhei o céu. Vi outras cores. Uma vibração diferente contrastava com a dor do meu peito. Ventos de Agosto, que reviram tudo. A poesia já deu conta disso algumas vezes. Eu era um olhar se abrindo dentro do caos.
Mas era a minha vida real. Poesia dura e doce, rima rica e métrica imperfeita
Não, não decidi tudo de uma vez. Nem sabia como decidir, se decidir, se queria ou se estava tresvaliando. Se aguentaria a saudade. Sim! Eu quase morro de saudade neste primeiro ano. Saudade da vida que estava a pouco quilômetros de distância, e que eu sabia que deveria deixar. Como se mata um amor? Qual é esta arma potente que aniquila o sentimento sem matar a alma?
A gente marca data de casar. De separar, jamais. A gente casa num dia e se separa por anos.
As coisas não estavam óbvias. O corpo queria, urgia, deixar a casa. Mas a alma queria ficar. A cabeça estava confusa. Pra onde seguir? O corpo, elemento físico e compacto, venceu. Eu estava fora. Vinte e cinco anos vividos. E a cabeça, tonta.
Um choro, frases repetidas, como mantras. Um choro que mais parecia um vômito. Uma infecção na alma.
Eu sabia que seria preciso atravessar um deserto. Eu sabia que estaria desinteira por algum tempo.
Vivi cada dia de dor. O labirinto que se formou em torno do sentimento, dos sonhos, das projeções e do futuro. Cada pequeno momento deste período, tratei com o respeito devido. Aprendi demais. Teve colo, abraço, afeto. Teve rejeição, desamor. Teve julgamento, antes do destrato. Ouvi coisas absurdas que eu não sabia de mim. Vi olhares que me remeteram ao século passado. Saí da cena recifense. Passei a evitar os bares da Mamede Simões, a rua boêmia e onde estão todas as “cabeças pensantes” referendadas da cidade. Aquele corredor polonês de cadeiras de plástico brancas, amarelas, vermelhas. Aos mais corajosos, eu agradeço. Foram palavras duras que ouvi entre o Frontal e o Central, antes mesmo de conseguir sentar numa mesa do Boi Neon. Pérolas colhidas ao léu:

Foi o teu feminismo que lascou tudo. 

Foi você trabalhando de dois em dois anos em campanha eleitoral que fez naufragar o barco.

Qual era do defeito que ele tinha e que você só descobriu agora, mais de 20 anos depois??

Uma pessoa tão legal, você jogando pela janela..... 

Faz um favor pra mim? Conversa mais com minha mulher não, porque vai que ela aprende estas tuas ideias de separação também.

 Nesta idade você não arranja mais ninguém. Melhor voltar pra ele. 


Quem sai de casa, abandona, perde totalmente a razão. 

E você saiu porque tinha outro né? Ta na cara! 

Cuidado... estas ideias liberais, de mulher liberada, nenhum homem aguenta não. 


E ainda deixa o moço com uma mão na frente e outra atrás? 

Você acha que ainda vai encontrar alguém mais legal do que ele? Jura? Se cuida..... 

Desculpa, amiga.... mandei aquela foto sem querer... é que vocês sempre brincaram carnaval e agora vi ele brincando e achei legal mandar pra você.

 Sei, sei... ele é uma pedra... mas você ama esta pedra. Volta....

Quando eu era criança adorava dançar quadrilha junina. Fui diversas vezes a rainha do milho. Nunca, a noiva. Eu amava a grande roda... Olha a chuvaaaaa.... Choveu.... passou.... balancê!!!!!! Tudo era genial. Mas eu torcia que o gritador esquecesse o passeio das damas. Não gostei nunca de passar naquele corredor, todos me olhando. E eram três segundos que muitas vezes me faziam pensar três vezes antes de aceitar o convite pra brincadeira. Eu tinha 11 anos, no máximo...
A Mamede Simões passou a ter pra mim este mesmo sentido. Passar pela rua repleta de bares e de pessoas que eu conheço de tempos desencontrados, me parecia o passeio da quadrilha. Eu, que sempre me senti partícipe da minha cidade, da minha bolha, da minha galera, agora estava ali, cabeça baixa, evitando comer o falafel do Central. Escolhendo horários que não fossem “os de pico” para sentar e tomar uma cerveja. Eu mesma me exilei. Eu mesma dei aos outros o tamanho que eles assumiram.
E, antes da primeira volta em torno do sol, chegou o documento de distrato. Eu saí de casa, mas o gesto definitivo não foi meu. Fiquei ali pensando nisso, com o telefone na mão, desligado. Me deixei chorar. Cansei. E nem aquele golpe me fez mudar. ”Volte pra casa, e tudo fica como antes”. A resposta que de mim saía era corporal. Não. Sim, tem dias em que vida dói. Feito pé torcido. Feito dente furado ou que nem garganta inflamada. Tem dores maiores. Mas nestes dias em que a vida dói que nem otite, é melhor respeitar. São as dores menores, as mais insistentes.
Distrato deste contrato, que nós dois firmamos e que eu não suportava mais. Destrato que chamam de divórcio. Um contrato não anula o sentimento, mas coloca tudo no seu lugar. Fui eu quem primeiro rompeu com algumas cláusulas. Eu saí do meu lugar estabelecido, subverti as marcas e modifiquei o cenário. Minha cenografia pedia mais leveza. Eu queria me mexer. E tentei modificar nossa montagem com a peça em cena. Tentei por anos trocar o pneu com o carro em movimento. Em vão.
Assinei um papel de desenlace. Como é que se finda um laço depois de assinar um destrato? Laço que era amor, agora é reconhecido em cartório como passado. Tem dias em que a vida dói muito. Sem remédio. Fala com alguém, faz um paliativo. Mas o ciclo da dor é que nem uma virose.
Neste primeiro ano não me ocupei em matar o amor. Me parecia suicídio. Tentei cuidar dele. Eu não acredito que um sentimento tamanho morra. O que mudou foi a minha relação com ele. Antes acreditava que tudo se pode fazer em nome do amor. Mas não. Nem tudo. Para amar é preciso estar viva. No sentido filosófico. Porque no sentido fisiológico, nem se cogita.
Escrevi cartas mentais. Cartas para quem nunca vai me ler. Que bobagem, que estupidez, escrever uma carta para quem nunca a lerá.... Escrever uma carta para dizer que sim, o amor parece que se foi, mas insiste em ficar. Parece que se foi, mas se esconde na chaleira do café, na manhã dos domingos. Ao amor tóxico, ao amor tristeza, ao amor covardia, ao amor vazio. Escrever esta carta para ninguém ler, mas para que saísse de mim mais um pedaço deste sentimento que afoga. Oxigênio em ambiente rarefeito. E, no entanto, a carta sopra nos meus ouvidos talvez como sendo mais um suspiro. Um pedido que sim, vá.
Um pedido para que deixe alguma coisa de mim ficar. Um apelo ao meu ser, que seja.
Que assim seja, que se respeite, que se ame, que se aninhe. Uma carta para quem nunca me leu. Uma carta para quem jamais me lerá. Um documento vazio de intenção, pleno em mim. Que bobagem, que estupidez, repito! Escrever uma carta de amor para quem jamais decifrou os signos, símbolos e métricas da alma que escreve.
Uma carta para analfabetos funcionais, que não interpretam as linhas vitais. Chegue este amontoado de palavras aos seus olhos, não traduzirás. E ainda assim, teimo em seguir contando a minha história. Porque basta que eu mesma a compreenda e a traduza. Que eu veja nas suas entrelinhas, meu sentido. Que eu seja minha própria tradutora e intérprete.
Nem sempre as respostas chegam. Elas estão em nós. Já habitavam aqui. No mesmo endereço do seu afeto, na mesma gaveta das memórias, no lugar exato da sua dor.
Recitei poemas. Vi meus escritos sendo rasgados à minha frente. Não falávamos mais a mesma língua. Não, não foi o meu trabalho. Não foi a militância feminista ou o ser dele de artista. Não foi maldade. Nem foi desamor.
Foi desacerto de marcha. Aliás, já fazia um tempo que a gente, antes casal pé de valsa, não se entendia no salão. Eu, pra lá. Ele, pra cá. Eu disse, ainda no nosso namoro, que só casaria com um homem que dançasse comigo. Deslizasse no salão e descolasse da realidade. Que me desse a licença poética. A gente dançou assim por anos. De olhos fechados, dançava melhor. Fechava os olhos e imaginava um mundo colorido guiado somente pelos passos ritmados. De olhos fechados, construía uma história, uma fábula. Pensava que deveria fazer assim por toda a vida. Jogar para a direita, para a esquerda, paradinha no centro, junto com a marcação da zambumba. Na vida a dois, tocava a zabumba, mas gostava mesmo era de dançar. Ser levada pelos braços dele como um passeio bom. De olhos fechados. Uma espécie de cegueira, talvez. Cegueira providencial. De forró pra xote, de xote pra baião. Ele inventava os passos. Eu não abria os olhos. A brincadeira podia acabar. Até que ele começou a ditar os passos, no lugar de conduzir. Parecia locutor de futebol. Ou o gritador da quadrilha. Perdia a poesia. Burocratizou a magia. Tinha um esforço desnecessário no casal que dançava há anos. Até que um dia, sem mais nem menos, chamei ele pra um xote e ele pela primeira vez negou. Eu gostava de dançar xote. O arrastado do pé no chão, a regularidade, a cadência. Xote é música de namorar. Quando tocava um xote, pra mim já era eu e ele. Nesta noite eu insisti. E me arrependi. Meu parceiro chegou no salão contando os minutos, ou as músicas. Dançou duas e me olhou: ta bom? Ta. Murchei.... Sentou na mesa e abriu uma cerveja.
São tempos difíceis. 
São tempos difíceis.
Eu ainda não sei falar da revolução dentro de mim, nem do golpe lá fora. Ou seria o golpe dentro de mim e a revolução lá fora....Eu ainda não sei. Falta muito.
Ainda não sei escrever sobre este rebuliço, este gesto largo e firme que me trouxe a esta paisagem estonteante. Ainda não sei me situar com as novas gavetas.
Onde guardo os talheres, onde estão os colares, o saca rolha, o pano de chão?
Onde acomodo meus gestos viciados, onde dobro minhas memórias já passadas?
Falta muito. Eu ainda olho para as cadeiras da sala como uma turista. Esqueço onde fica o lixeiro e não tenho nenhuma intimidade com a máquina de lavar.
Não aprendi o tempo do elevador. A viagem do 14º até o térreo me parece intercontinental. Tenho atravessado mares, a propósito. Todos os dias.
Onde devo ter guardado aquela extensão?
Onde se esconde a chave do carro?
Qual é o abrigo das minhas dores?
As paredes ainda em branco reverberam um eco que intriga.
Casa sem memória, guardando todas as histórias que eu trouxe de endereços passados. 
Juntando tudo, não dá nem a metade de mim.
O restante, vai que está entre os guardanapos, ou quem sabe, no armário da área de serviço. Escondido em alguma sacola de plástico...
Falta muito.

Ressignificar o almoço do domingo, a tapioca do café da manhã. Ressignificar a cama de casal (?)... toda pra mim agora e tão, tão, tão maior. Ressignificar, mas ao mesmo tempo, brigar para manter a memória do que vivi. Honrar.  O nascer de um amor não deve ser esquecido. É mais ou menos como se eu negasse minha própria história. Como se, negando a vida juntos, eu estivesse apagando anos que vivi. VIVI. Viveria tudo novamente. Porque foi do meu mais profundo ser que nasceu o que sinto. Sinto, no presente do indicativo, pra dizer que sim, saí de casa com o peito em chamas, com a alma arranhada, com a estima no subsolo... mas reconhecendo a grande história de amor. Tanto, que não me livro dela. Não me desaprego. Ela está na minha pele ainda.
Não posso escolher a sua métrica nem a minha rima. Eu não posso mais voltar. Não é orgulho, este sentimento unilateral. Nem mesmo a sensação de mágoa. É porque sei que já não somos mais os mesmos. Eu ainda vejo o mundo com as lentes criadas por nós dois. Eu ainda sinto a vida. Tenho ímpeto de ligar quando recebo a notícia da morte de um amigo em comum. Eu às vezes ainda coloco quatro xícaras na mesa para o jantar. Eu sinto muito.  
Foram caminhos cruzados por décadas. Caminhos que se encontraram, entrelaçaram, se misturaram.... houve um tempo em que eram as mesmas rotas, os mesmos horários óbvios. Um chegava, já vinha o outro. Um vinha, tinha o outro na sombra. Um vivia, respirava o outro.
Até hoje sinto um conforto que vem deste amor. Um conforto de ter vivido este amor, de ter sido dele personagem e de ter me nutrido tanto tempo deste sentimento bom. Até hoje, pensar neste tempo me conforta. Conforta minha dor.
Mas é preciso se livrar, deixar fluir e fruir. Deixar ir, desapegar.

Despedida na Rua da Saudade
A paralela é a união
Abraço na encruzilhada da vida
Despedida que não cabe no abraço
Que não se encerra no perdão.

Segue a poesia da vida. Vai a prosa, nesta crônica sem fim. As linhas nunca acabam. São o futuro. Estão em branco.


Horizonte

 Pausar.  Simples e necessário! Tempo restaurador. Arrumar as gavetas da cabeça, acariciar a alma, alentar as dores, afagar os prazeres. Fec...