domingo, 26 de dezembro de 2021

pandemia

 

Hoje é véspera de natal e eu desejo imensamente a vida.

Que a gente continue desejando

Um sorvete, um beijo, uma viagem

Uma fatia de bolo, um abraço, um mergulho no mar.

É preciso sonhar.

Meu presente de natal é o meu sonho em estado de alerta,

Incomodando para que eu dele não deixe de precisar.

Hoje é véspera de natal e a vida plena é meu sonho de consumo.

domingo, 19 de dezembro de 2021

Quase tarde

 

Acordei sentindo o corpo todo meio dormente, meio vibrando. 

Um sono absolutamente profundo, Um despertar lento, relutante.

Aliás, a palavra é relutante.

Lutei muitas vezes. Insisti em perder.

Relutei por anos em aceitar. Acolher. Refusei oportunidades, me escondi atrás de tantos fantasmas. Meus esconderijos quase perfeitos.

Eu, minha principal algoz, dando voz a todos os comentários. Vestia a fantasia alheia e dela me apossava.

Capaz de criar tantas realidades, desci dos meus palcos, apaguei as luzes e me fechei no camarim. As cortinas seguiram abertas, sinalização para saída de emergência, fuga tragicamente planejada.

Mas, por maior que seja o bunker, um dia há que se abrir a porta e buscar água, comida, ajuda. Por mais perfeito que seja o disfarce, em algum momento a maquiagem borra, o chapéu voa, a máscara cai.

Foram muitos os passos. Primeiro, em círculos infundados, encontrando desculpas vazias baseadas num sentimento em nada parecido, mas denominado de amor. Depois, muito depois, novos caminhos titubeantes, cambaleantes, trôpegos.

Reabilitação para a vida.

Reaprendi a respirar, a nadar nas minhas águas turvas e bravas, a amar o que é meu. Uma passagem nem sempre linear.

Eis que hoje eu acordo sentindo diferente. Acolhendo meus prazeres, reivindicando minha memória, reconstruindo minha história. Eu não sou o desenho do passado. Eu não sou o decalque das décadas nostálgicas.

Bordo com palavras meus novos sonhos. Faço e refaço pontos que eu mesma criei. Misturo as cores que me aprazem. Acalmo minha pressa de viver, alimento a fome de ser.

Não me incomoda reciclar, reutilizar ou repaginar sentimentos. Não tenho a avidez capitalista do novo, do exclusivo, do todo meu. Vou trazendo na bagagem o que ainda me apraz. Carregando o peso que posso levar sozinha.

Aliás, esta foi a lição mais difícil de aprender. Fazer a mala para aquela viagem e só levar o necessário. Passei a fazer o exercício do minimalista. Experimentar o pequeno como se fosse o fundamental. 

O escasso, sem restrição.

Divagando e brincando com as palavras, me dou conta que ainda estou deitada, respeitando o ritmo do meu despertar.

Quase tarde, mas ainda manhã. 

Há tempo para celebrar o domingo.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Batuta do Seu José

A batuta do Seu José


Era julho de 2019. Meu penúltimo dia de umas férias rápidas em Paris, fui passar dez dias. Pouca bagagem, nenhuma intenção de fazer compras.

A ideia era flanar. Fiquei no apartamento de um amigo na Porte D’Orleans. 

Cheguei sem programação fixa, mas tinha uma única missão. Acordei na manhã ensolarada e rumei para a tarefa. Bati a Rue de Rome em Paris de cima abaixo e não achei a loja. Resumo da ópera: ninguém conhecia! Até que depois de arrastar meu pobre francês em boulangeries, entre os passantes... decidi me aventurar numa loja similar: Rome instruments. Entrei e encontrei exatamente o artigo em questão. Trouxe com todo cuidado pra Recife, pois era frágil. Passei umas duas horas batendo perna e achando que o meu francês estava cada vez menos entendível... mas na verdade meu irmão tinha me recomendado muitíssimo e com veemência uma loja que jamais existiu na história da cidade luz!!!!

Valeu a pena quando entreguei o pacote bem embaladinho. Um tesouro pra ele. 

Meu irmão José Renato é Maestro. A encomenda, duas batutas de fibra de carbono, levíssimas. Um desses exemplos em que o “vale quanto pesa” não se aplica.

Aprendi com ele que a dedicação tem sua recompensa. Que precisamos acreditar e perseguir os objetivos. Com Nato, seis anos mais velho que eu, li poesia até tarde da noite. Acordei cedo para ir às aulas de piano num fusquinha sem limpador de para-brisas, mas que nos livrava do ônibus lotado.

Zé Renato, hoje maestro da Orquestra Sinfônica do Recife e da Orquestra Criança Cidadã, é meu tudo: O irmão-abraço, o irmão-acolhimento, o irmão-afeto. 

Fui mãe de leite da sua primeira filha, sou madrinha da caçula. Nossas vidas se entrelaçam em um caminho de partilha.

Estas fotos são do primeiro concerto dele com a orquestra de meninos e meninas do Coque. 

Sentei no gargarejo e me emocionei com o repertório, com o solo de viola e com a última peça, de Beethoven. Pensei na história de cada jovem músico que estava ali, refiz na mente nossa trajetória.

Mas nada me tocou tanto, nada me levou para tão distante... Eu e a minha mania de ver as sutilezas... 

No meio da última peça, a batuta de fibra de carbono caiu da mão do Maestro.

Ouvi o toque da queda, tive um pré-impulso de ir resgatar, mas fiquei ali quietinha. Ele continuou regendo. Eu parei o mundo e fiquei acompanhando as mãos expressivas do meu irmão. As mãos que pediam calma, paixão, força e unidade. Uma pausa nos Cellos e alguém coloca a batuta dele na estante. Com elegância e intimidade, ele dá um tempo de pega novamente seu instrumento.

Pensei comigo: eu andaria a Rue de Rome mais umas cem vezes para viver este momento. Nem sei se a batuta que ele estava usando era a mesma que eu trouxe na sacolinha de mão com zelo extremo, mas, como dizem os franceses, Tampi...

Acabou o concerto, aplaudi toda a história dele ali. 

Aplaudi as noites de estudo, os dias de suor. 

Aplaudi os 30 anos de aulas no conservatório.

Aplaudi a verdade que existe nos seus gestos.

Aplaudi o meu irmão, que carrega o coração na ponta da sua batuta.

sábado, 11 de dezembro de 2021

Clarice, vem conversar!

O mormaço emerge do chão.

A chuva fina que cai insegura se desfaz antes de tocar no solo. 

O suor que traça caminhos incertos pelas minhas costas chega a fazer cócegas.

Recife parece um forno.

As roupas desfilam grudadas nos corpos, o pensamento anda em câmera lenta. 

No supermercado aqui perto de casa o tomate está custando R$ 9,29 reais o quilo. Onde vai parar este mundo? Um simplório molho de tomate com cebola, louro e tomilho virou iguaria. Uma pitada de sal e pimenta pra levantar o sabor... O molho vinagrete do arrumadinho do final de semana, ou pra acompanhar aquele churrasco... aliás, a carne também está pela hora da morte. Melhor mudar o cardápio do domingo.

Volto com as compras e quero que o mundo congele, literalmente. 

A umidade do ar não é assim tão relativa. Me parece absoluta. 

Recife parece um forno.

E eu cozinho as ideias, tempero os sentimentos enquanto sinto o peso da tarde.

Sonho com o pôr do sol, desejo a brisa que vem do mar. 

Recife, esta cidade litorânea que respira agreste.

O mapa não transpira, não se compadece de mim.

Minha cabeça dói. Deve ser o calor. 

Chego com as compras, vou guardando, abro logo o pacote de chocolate amargo e destaco um pedacinho. Mordisco as pontas e sinto o agridoce da nota de sal. 

Gosto dos opostos. Gosto de sentir na boca os sabores tomando lugar, desenhando aromas, afagando memórias.

Vou ordenando meus dias na cabeça enquanto guardo o milho de pipoca, lavo as frutas e separo os legumes.

O que eu diria a ela no dia do seu aniversário? Como contaria sobre este Recife tão distinto da sua infância? 

Um Recife que há dois anos não tem carnaval. 

Um Recife, cidade desigual.

Um Recife que amo como talvez, você também.

Queria te dar de presente a cidade que mora no meu peito.

Queria dividir um sorvete de tapioca, andar na beira do rio e dar boa tarde ao vendedor de amendoim. Torrado ou cozinhado?

Sexta-feira, 10 de dezembro. Dia que se faz mais um.

Clarice hoje faz 101 anos.

A chuva fina canta melodia nas folhas da papoula. O calor desenha arabescos no vidro da janelas. 

Senta aqui, Clarice... vamos conversar.


Na foto: Clarice menina.

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Um teatro é um abraço



Não leve em consideração esta foto amadora. Foi o melhor que consegui. A luz estourada, a falta de foco e enquadramento, a evidência na cortina encarnada com franjas douradas, os arabescos que aparecem na penumbra e quase nada dizem do momento que vivi. O piano parece até mais magro na imagem, uma perspectiva pouco usual. O pianista, que tinha o holofote sobre si, no meu registro é um homem sem rosto. O artista com pele de cera.
- E porque, então insistir em publicar e descrever uma foto tão insignificante?
- Pela força do momento.
O palco é do Teatro de Santa Isabel. Desde criança frequento o lugar. Já vi espetáculo da plateia, dos camarotes, das frisas, da torrinha e até das coxias. Já estive na plateia e no palco. Ri e chorei. Aplaudi, pedi bis. De monólogo a orquestra. Peça infantil e dança. Teatro de bonecos e coral. Eu poderia lembrar muito mais.
Um teatro é
um abraço
. E no desenho do Santa Isabel, o abraço é real. As frisas contornam a plateia. São braços sinuosos e roliços que envolvem as cadeiras.
O que posso ver além da foto é a emoção de ter voltado ao teatro depois de um ano e oito meses de jejum. Acho que nunca fiquei tanto tempo sem pisar ali. Fui chegando e logo na porta recebi a acolhida de dona Ivete, que vende cerveja, café, confeito, chocolate e pipoca.
-Quanto tempo! Foi ela me falando, em tom de festa.
O que posso ver além da foto é o cheiro da sala de espetáculo, o meu pé pisando no carpete macio, as escadas que me conduzem ao meu lugar. O toque triplo que avisa o início do espetáculo. As luzes se apagando aos poucos. A expectativa de comungar de mais uma aventura.
Hoje foi o primeiro concerto desde o início da pandemia. O teatro estava “lotado”, com apenas 30% da capacidade ocupada. E eu lá 😊
E o espetáculo? O piano esculpido e lapidado de Luís Felipe Oliveira. A música que atravessa a gente sem parcimônia. A capacidade de revirar as tripas da alma. O pernambucano de gravatá flui. Interpreta Beethoven, Lizt, Dutilleux e Chopin num diálogo forte, doce, emocionado. Na minha cadeira, os óculos ficaram embaçados algumas vezes. A alegria de compartilhar tudo aquilo. A força da arte.
O tempo passou espichado, querendo que não acabasse nunca. Na última peça um quinteto de cordas acompanhou o pianista. E eu ali querendo absorver cada segundo. Laila no palco com sua viola, uma sianinha que enfeita as vestes da minha ânima.
Quando a luz acendeu, eu já estava em pé. Um grito de BRAVO me saiu inadvertidamente, meio tímido ao mesmo tempo. Como se o distanciamento social ou a abstinência tivessem de alguma forma me atingido.
O espetáculo acabou e eu juro a vocês que trouxe partes deles comigo. Aliás, acho que ele começou muito antes, quando Dante me convidou para ir ao teatro. Quando escolhi o vestido e pedi o uber. Quando desci com Luís e Lis e nos juntamos a Dante no café do Teatro. O primeiro marejar foi fruto de me ver com meus filhos na frisa. Tão pequeninos eu os trazia pelas mãos nos domingos de tarde. Senti o passado com seu negativo não revelado projetando as imagens...
Saí do Teatro meio muda, meio exausta. Meio saudosa, meio de ressaca de tanto sentir. Saí querendo que o teatro me abraçasse mais um pouco. E querendo também descansar. Saí como uma criança que ama e se exaure na primeira festa de aniversário.
Aqui muito pra nós, acho que o Santa Isabel estava também saudoso de mim. Minha crônica poética dá conta disso. Meus versos de algum jeito também são filhos daquelas paredes seculares. Sou bisneta ou afilhada da arquitetura. Sou formada nesta escola.
Eu só pensava em chegar em casa, escrever este texto antes que ele se diluísse na minha rotina de amanhã.

domingo, 3 de outubro de 2021

Passiflora

 

Acordei de um sonho ruim. Prefiro nem contar. É de arrepiar, de fazer chorar.

Vomitei o sonho no meu dia. 

Já começou atravessado. O céu estava azul, aquele infinito riscado de branco. Não combinava com meu espírito.

Mas também... nunca fui chegada a combinações. Sapato da mesma cor de bolsa, conjunto de saia e blusa... nunca foi a minha mesmo. Prefiro os desencontrados.

Um degradê de sentimentos

Camadas recheadas com memórias reviradas

Outras exumadas

De onde vem tanta lembrança?

 

Fui comprar o pão, fiz o café, sentei à mesa.

 

Insisto em manter a rotina. É uma maneira de apaziguar o devaneio que bate à porta da mente e tem vocação para incensar a alma.

Acordei deste pesadelo simbolicamente hoje.

Cada pessoa tem o seu, pensei no meu íntimo.

Ele me visita cada vez com menos frequência. Sinal que está se esvaindo, eu rogo.

São 8h da manhã, faz três horas que acordei e ainda não emiti uma palavra sequer. Mas a mente prolixa ensaia o monólogo. A plateia sou eu mesma. O Palco imenso para uma única cadeira ocupada.

Foi somente um sonho ruim, tento me convencer.

Rasgo o pão com a mão enquanto a serra aguarda ao lado. O café vai puro mesmo.

De doce, basta a vida, eu prego.

Eu não devia comer tanto pão, nem tanto glúten, nem tanto trigo.

Mastigo o pão e ele me remete ao sonho. Brinco comigo mesma.

O sonho não acabou. O de hoje veio recheado com creme de dor.

Mastigo o sonho de cada dia, engulo seu enredo e saio para a rua.

Mais tarde eu tomo uma passiflora.

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

alinhavando

 

Tento aproveitar um momento de paz, ou de solidão, pra escrever.

Devo ter meia hora, no máximo.

Estou aqui no trabalho. Calhou de estar sozinha na sala. 

Lá longe ouço o barulho da reforma do elevador. Martelos, serras elétricas.

E, ainda assim, eu comecei este texto dizendo que estou em paz.

Nos últimos dias a lua cheia pendurada no céu do Recife deve ter mexido comigo.

Alternei entre marés muito altas e outras baixinhas.

Ressaca.

Fortes ondas de memória, ventos transformadores. Longas caminhadas.

Dizem que a lua conversa com as mulheres, assim como dita ordens aos ventos.

Esta lua me trouxe lucidez.

Dessas avassaladoras. Dessas estruturantes. Dessas desconcertantes.

Uma reforma interna, menos barulhenta do que a que eu ouço agora.

É preciso caber em si.

Um trabalho...

Sim! Um trabalho!

Eu sou este jogo que se monta e desmonta. 

Que remonta e desconstrói.

Tenho produzido novas peças. 

Como quem faz um crochê, desenhando com linha e agulha figuras aleatórias. 

Vou desenhando e desfazendo. 

Alinhavando 

Contando histórias, calejando os dedos, cada ponto, seu lugar.

Lembro das minhas avós, mestras no crochê.

Elas faziam lindas roupas pra mim, pras bonecas, faziam colchas e redes. 

Tudo a partir do fio e de uma agulha com ponta rombuda.

Quais pensamentos elas cosiam enquanto desenhavam com a linha?

A precisão de fazer arte, de vestir e adornar, a partir de quase nada.

É preciso caber em si.

O exercício é diário.

As luas minguam, crescem, novas.

Eu caminho pra dentro.

A reforma lá fora silenciou. 

Deve ser a hora do almoço. 

domingo, 5 de setembro de 2021

mais uma dose

 


Saí de casa com uns pinguinhos me beijando

Céu azul pingando pequenas bênçãos

Mania de ver o que não existe

 

- Justo hoje, que tirei a sombrinha da bolsa

 

É setembro

 

Tomei a segunda dose

Mais serena

Mais emocionada

Mais acomodada nesta noite sem fim que é a pandemia

 

Mais uma lapada

Mais uma dose

 

A agulha entrou doendo, formigando.

O coração acelerou

Os olhos marejaram

Não durou um minuto

 

O Recife continua o mesmo

Gente acampando nas ruas

Fome crescendo nos canteiros

Rio brilhando sob as pontes

 

Um ar de domingo impregnando

Aquela sensação de lavar a alma

Vestir a roupa do dia

Celebrar sem fim

Os ciclos renovados

 

Nada diferente

E uma coisa mudou

É dose!!!

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Dendê na quarta-feira

Tirei logo cedinho o peixe do congelador.

Não sabia ainda como preparar, mas deixei as ideias marinando até as postas chegarem na temperatura ambiente.

Espremi um limão na pescada amarela e deixei descansar.

 

A casa quieta.

Uma quarta-feira morna.

Desmarquei alguns compromissos.

Quem estava de molho era eu.

Pensei em ir ao salão, fazer as unhas pra entrevista marcada às 15h. Mas desisti. Vou assim mesmo do jeitinho que estou.

 

A casa cada vez maior.

No quarto, meu filho ainda dormia.

Meu filho luz.

Luís.

Ele é o caçula que eu aprendo a enxergar adulto.

Acorda, faço um café e a gente fica ali, enrolando o tempo entre um gole e outro, conversando.

Abro a geladeira e vou tirando cebola, tomate, pimentão.

Coloco na bancada óleo de dendê (ousada para quem ainda vai enfrentar a quinta e a sexta...)

Azeite

A tábua de madeira

A faca preferida

E vou montando o peixe.

Abro a geladeira novamente buscando o coentro, que tinha esquecido.

Vou acomodando tudo na panela que esquenta em fogo brando.

As postas de peixe ficam entre os legumes.

Gosto do cheiro que vai subindo desta mistura.

Levanta a fervura e eu tampo.

Luís pega o prato, se serve de arroz e peixe, rega com o molho alaranjado.

 E de repente, me vi dentro de um abraço, assim.

Um abraço que me destemperou. 

E me fez marinar os olhos.

Tanta coisa naquele abraço! Ali no meio da cozinha me senti que nem uma chaleira em ebulição. Entendi que palavras não seriam ingredientes do almoço.


A casa ficou pequena pra mim.

O amor estava no peixe, no arroz, no dendê em plena quarta-feira.

Estava no silêncio, na conversa mais cedo.

É tudo um abraço só.

E ainda é quarta-feira.

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Sobre dor e guacamole

 

Sabe aquela sensação de estar deixando o caixa do supermercado, com várias sacolas nas mãos e lembrar, num rompante, que esqueceu de comprar café?

Você interrompe a caminhada por um segundo e só não leva a mão à testa num gesto mecânico porque está segurando as compras.

- Agora já era.

Hoje acordei na hora, com a sensação de estar atrasada. De ter esquecido alguma coisa. O corpo dolorido das dores do mundo. Fiquei deitada um par de minutos, pensando o que fazer da vida.

No dia anterior, fui ao velório de mais uma mulher assassinada pelo ex-amor... O caixão no meio da capela do cemitério de Santo Amaro gritava. Por justiça. Mais uma. Menos uma.

Anteontem, no prédio vizinho, aconteceu quase a mesma coisa. Um golpe do destino fez o agressor errar os 3 tiros. Ele se matou depois.

Eu chego em casa do cemitério meio encerada. Sem sentir nada. Impermeável. Deito na cama e fico ali atônita. Decido ir caminhar na Jaqueira. Fui no automático. Tinha um saxofonista na porta do parque tocando umas músicas... eu caminhei buscando as melodias, que iam e vinham dependendo da minha localização. Eu não tinha nenhum trocado pra deixar dentro do case dele.

Na volta, vejo na geladeira um abacate maduro, já passando do ponto. Corto as cebolas em pequenos quadradinhos, deixo de molho no limão. Amasso com um garfo a polpa do abacate. Corto cheiro verde bem miúdo. Constato que está faltando tomate... rego a massa de abacate com azeite, sal e bastante pimenta do reino. Junto os demais ingredientes. Olho em volta e vejo a pimenta rosa ali dando sopa... misturo no guacamole para dar um toque de cor na pasta verde degradé.

Cortei umas fatias de pão, arrumei tudo na mesa. E a fome passou antes mesmo que eu sentasse.

Estava exausta.

Uma dor no corpo chamava a alma. Uma covardia por dentro clamava por respeito. A minha garganta dolorida de tanto prender o grito.

Me abandonei na cama. Não eram nem sete da noite. Por via das dúvidas, coloquei o termômetro e a temperatura era 36,2°.

Tudo bem, eu pensei.

Deixei a alma sangrar. Fiquei sentindo a dor da morte destas mulheres que eu nem conheci.

Acordei hoje ressacada.

Faltava ovo, queijo, leite, fruta. Saí relutante da cama, fui ao supermercado. O leite mais de R$6,00. Melhor comprar suco de uva.

Eu ainda arrastava o lençol.

Cheguei no caixa, conversei um pouco com a operadora, digitei a senha e nem olhei o valor. Guardei a nota. Quando arrumei todas as sacolas nas mãos, tendo o cuidado de deixar mais livre a sacola da doação que iria fazer na porta do supermercado, lembrei do café.

- Agora já foi.

Entreguei dois pacotes de biscoito waffle de chocolate pra Tayane, que fica sempre ali com seu filho, pedindo ajuda. Nem sempre eu atendo aos pedidos dela, e quando o faço, compro coisas mais básicas como cuscuz, arroz, macarrão...

Hoje eu decidi comprar pro pequeno, que não chega a ter 6 anos. Quando entreguei, ele pediu pra comer e, me afastando, ouvi da mãe:

- esse é tão bom que eu vou vender.

E o menino:

- mas mãe, estou com fome.

E a mãe:

- Grande coisa... eu também.

...

Meu coração já vinha apertado. Já vinha sem bater.

Foi ali que me acabei de vez.

Em casa, tirei o guacamole da geladeira,e joguei no lixo. 

Tinha apodrecido.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

caça às bruxas

O fogo que cozinha meus desejos

é o mesmo que carboniza meus sonhos


Em que tempo as mulheres não foram queimadas em praça pública?

Se brilha demais

Se ama demais

Se deseja demais

Se é grande demais 


O molde não nos cabe


A fogueira que me mata é a mesma que me aquece.

Hoje uma mulher foi queimada dentro de casa

Outro dia, foi no Cais de Santa Rita


Eu queimo junto com elas.

Elas viram números. 

São imortalizadas nas manchetes cada vez mais voláteis

O fogo deixa marcas em mim.


Nossos corpos públicos não são de ninguém

Nossos corpos públicos são de todo mundo

Nossos corpos públicos não são nossos


Eu ando pelas ruas 

Insisto em existir

 

Há uma fogueira em cada esquina

Um tribunal em cada link

Um julgamento em cada like


As bruxarias seguem fora da lei.

1095 dias

 


Comemore as suas batalhas

As derrotas 

Os êxitos

Vale comemorar as perdas

Os ganhos

As dores

As curas

Conte as cicatrizes

Cuide das feridas

Permita a desconstrução

E o renascimento

Se deixe crescer

Expandir

Permita o voo

Um dia, quando menos esperar, 

Você acorda beija-flor.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

conto de fadas

 

Era madrugada e a menina acordava num salto.

Um facho de luz vinha da sala.

Deslizava entre os lençóis, seus pés pequeninos tocavam o chão. O corredor era imenso! Ela descia os dois degraus e estava na sala de jantar.

- Não consigo dormir...

A luz acesa sobre a mesa iluminava muitos papeis. Mapas gigantes para os seus olhos tão pequenos.

Lá fora, o silêncio era cortado pelos grilos, o coaxar de uma ou outra rã... ou seria sapo...

Ela esfregava os olhos cansados.

- Já é de madrugada?

Nem bem conseguia, em pé, alcançar o tampo da mesa. Espichava-se na ponta de bailarina.

Aquelas noites de trabalho do pai eram especiais. Ele cansado do dia, esticando o expediente.

- Me conta uma história?

Segurava na sua mão, subia os dois degraus, atravessava o corredor imenso... tudo ia ficando penumbra.

Deitava a menina na cama, embrulhava com o lençol.

- Você é o meu presente.

Começava uma fábula qualquer, construída na hora. Eram histórias de agricultores, de cabrinhas professoras, de pessoas que se alfabetizavam.

A voz do pai, vencida pelo cansaço, ia ficando lenta.

A menina cutucava.

-Acabou?

Ele voltava à narrativa.

- Pai, conta uma de princesa?

Ele já não ouvia. Ressonava.

A menina se aninhava, enrolada no lençol.

Quiçá, sonhava com princesas, que libertariam agricultores... ou com príncipes professores de animais que ainda não sabiam ler. Ou com fadas madrinhas que, com suas varinhas, fariam a revolução.

Esta lembrança longínqua, de noites e noites e noites de conversa sussurrando pra não acordar a casa, desperta de um longo sono. Hoje a menina escreve suas próprias histórias. Revira memórias, dá nome aos sentimentos e embrulha tudo pra presente. 

Graças ao pai.

amor roubado

 

A saudade me paralisou

Engasgou a infância

Meus dez anos tomados de assalto


Perdi tanto:

as flores no quintal

as histórias antes de dormir


Um amor roubado


Os finais de semana programados

e a nossa tristeza quinzenal

eram traduzidos

nas paredes grossas

nas janelas pequenas

no pão torrado demais


Passei a acordar de madrugada

a  procurar seus vestígios

passei a querer esquecer 

mas era a dor que não passava


Lembro do cheiro

dos móveis comprados de segunda mão

na Rua da Conceição:

a mesa redonda de jacarandá

as cadeiras de madeira com encosto e assento de palha trançada

os lençóis estampados com babado azul

o jogo de damas

os brinquedinhos de chumbo


Lembro dos olhos dele

nos tempos mais turvos

quando me visitava na escola


Queria esquecer


Cresci silenciando

emudeci amadurecendo

a saudade que sentia

dos sanduíches de bolacha cream cracker com geleia de mocotó

de ser “embrulhada como múmia" 

da vitamina de abacate que não gostava de tomar de manhã

de visitar o peixe boi na Praça do Derby

de comer sanduíche de queijo no drive in


Trancaram meu peito

Perdi a chave

Construí um muro

Escondi a poesia


Era tudo saudade do meu pai

sábado, 10 de julho de 2021

Sábado



Depois da feira orgânica, café da manhã com mulheres queridas. Cada uma com sua história de vida. 

A pequena mesa redonda no terraço congraça nossas rotinas. 

A chuva caindo como cortina ali pertinho evoca os banhos na infância, as bicas de telha...

Em casa, experimento um momento só meu. Raro. 

A cozinha me convida pra um diálogo. 

Hoje quero leveza.

Um salmão com gergelim ao forno, ainda molhadinho... Batata doce assada. Na frigideira, cebolinha roxa, cogumelos de Paris e cenoura caramelizados. 

Não, não é sobre culinária.

É sobre prazer!

É sobre cozinhar pra si mesma e depois passar um café e comer um quadradinho de chocolate amargo, vendo aquele filme francês.

É sobre sentir devagar a crocância da cenoura, o sabor forte da cebolinha, a maciez do cogumelo e experimentar em cada garfada uma combinação diferente.

É sobre afagar o desejo de viver.

E amar a batata doce assada polvilhada com pimenta do reino. 

E sentir o salmão derretendo a cada mordida.

É sobre respeitar seu sábado. 

E prolongar a sensação de abraço.


terça-feira, 29 de junho de 2021

O primeiro vôo

 

Um beija flor pousa 

Sereno no meu ombro

Adorno desejado

Símbolo de vida

Leveza conquistada

A duras penas.


Um beija flor pousa 

Serelepe ao lado do peito

Bate suas asas

Ritmando meu coração

Beija minha orelha

Não sou flor!

Dormi mulher

Acordei colibri.

domingo, 27 de junho de 2021

vida de colibri




Tenho atentado para as mulheres que escrevem.


Aquelas que ousam, ousaram ou ousarão.


Aquelas antes de mim, de agora e do futuro.


Tenho atentado para este gesto de coragem.


A força de reescrever a história a partir dos olhos delas. Necessidade de ser porta voz de si e de suas crenças. Desejo de gerar para além do óbvio .


Nossos corpos impressos no papel, navegando pelas redes, adornando nossas mentes.


Tenho atentado para mulheres que, como eu, teimam e escrevem.


No intervalo do trabalho, no editor do word na fila do supermercado, enquanto esperam.


Esperamos muito, há muito tempo!


Uma espera muda.


bruxas ou santas


princesas ou devassas


musas desavisadas


certas ou erradas


Pelas regras alheias


Meu estado inquieta. Escrevo sob a insubordinação da minha mente. Sem pseudônimos ou codinomes. Tenho sentido a revolta ancestral, secular, universal. Estou atrasada. Levantei tarde, perdi o bonde, mas o que me vale é que encontrei o caminho. Acordei do sono lerdo que mais alienava que restaurava. Um denso desequilíbrio.


Ontem, sentei no chão da cozinha e chorei.


Olhei os móveis novos que comprei em uma loja popular e me deixei abandonar ali, cercada de aglomerado por todos os lados. No castelo de teias que teci pacientemente, baixei as armas.


Uma cozinha diz muito. Uma casa com cozinha (minha casa com cozinha) diz mais. Não quero ser provisória, mas ainda não sou definitiva. Não arrisco a permanência.


Um apartamento alugado


Um jogo de café barato


Uma cozinha de aglomerado


Tenho ensaiado ser.


O primeiro livro no forno, tatuagem inaugural marcada para terça de tarde. Vou me riscar. Escrever em mim mesma este conto. Um beija-flor de liberdade e leveza, que pousa sobre meu ombro esquerdo.  

Tenho atentado para as mulheres que escrevem, para aprender a contar a minha história.

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Poesia


Vejo beleza no desfazer-se.

Desintegrar-se.

Esmaecer.

O caminho para deixar de existir

Rumo certo de tudo.

O oxigênio que nos pulmões mantém a vida

O oxigênio que ao léu

Enferruja

Oxida

Estraga.

A vida que se revigora

A vida que se finda.

Inerte

Consolo o destino

Amarro o discurso

Apaziguo o pensar


Que tudo é alfa e ômega

Que tudo é céu e inferno

Que tudo é vida e morte


Poesia, este recurso de imortalidade.






terça-feira, 8 de junho de 2021

Pelo Recife adentro



Saudade de andar no entorno do Mercado de São José.

De me enfronhar pelas ruas estreitas

Lotadas de sabor e de sol

Em algum momento um vendedor me ofereceria inhame

O outro gritaria, estridentemente:

- Abacaxi é um real!!!!

Saudade de conversar com a minha freguesa da batata doce.

- Vai de branca ou de roxa esta semana????

E o cheiro das especiarias

Das ervas

Das flores

E as sacolas pesando na minha mão

E mesmo assim, passando pelas castanhas,

Peço um quilo bem pesado

E o sol vai subindo, a pino

O suor desce pelos braços

E as goiabas passam por mim, encantando

A maresia trazida pela barraca dos peixes

A vontade de comprar uma rede...

Uma vassoura nova, talvez.

A última parada, o caldo de cana

- Com limão e muito gelo, por favor!!

Pra aplacar a saudade

Pra esquecer o calor

Pra matar esta saudade

Saudade de mim mesma.

Tempo bom

Do tempo em que o mise en place

Começava na rua da Praia.

sexta-feira, 4 de junho de 2021

desfragmentando

 

Sentada no meu quarto

Divagando sobre a vida

Me dou conta que perdi o medo de ser só.

O cenário é tão simplório

Tendo em vista a tomada de consciência

Meu quarto numa sexta-feira à noite, meio chuvosa...

Num apartamento alugado, ainda sem “a minha cara”

Transitória.

Isso não foi assim, num piscar de olhos

Uma natureza lenta me impulsionou

Sinais de mim mesma

Fragmentos esquecidos de sonhos 

Displicentemente pelos cantos

Relicários

Quase objetos pré-históricos

Souvenires, 

Post its

Cartas 

Lembrando quem sou de fato.

Por vezes, me senti repetindo aquela história infantil... distribuindo migalhas de pão pelo caminho

“ser só” não é “estar”

E digo isso de cátedra

Já fui só.

Uma mulher sozinha está sem ela mesma

Gosto de utilizar a expressão DESINTEIRA

Uma mulher só 

Está partida ao meio

Ou em fragmentos.

Tenho vivido a aventura de (re)conhecer-me

Tenho me alegrado comigo mesma

Tenho chegado mais perto

Tenho a mim.

terça-feira, 1 de junho de 2021

Junho


Traz a certeza do segundo fruto

Uma firmeza

Uma clareza


Um amor.

Luís.

Celebro a tua chegada

Posso sentir no peito 

A mesma emoção

A mesma alegria

Pelo menino que veio 

Pelo rebento que trouxe tanta luz. 

Luís.

São 23 anos 

O tempo passou 

E ao mesmo tempo

Está em nossas mãos

Vejo no homem, o menino 

No menino, o mundo todo.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Sobre rezar e beber

 


Há dias e dias

Senões de certezas

Abrigo de dúvidas

Há dias e dias

A alma se lava

Rezas potentes

Cachaças sustentas

A alma pinga

Há dias e dias

Neste tempo úmido

Neste tempo árido

Neste tempo amorfo

Coleciono rolhas da quarentena

Numa tentativa de aprender a esperar

Garrafas que se jogam ao mar

Com mensagem de leveza

Para a alma

Há dias e dias

Que viram noite

Que viram insônia

Que nunca param

- Tudo é o tempo jogando as cartas.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Vôo solo






Filho, 

Você, lua em capricórnio. Eu, lua em libra.

Seu signo solar, minha lua. Dizem que são os complementos. Eu não entendo direito. Mas sinto. 

Sinto uma alegria, uma força nesta travessia que escolhemos pra fazer de mãos dadas. 

Você, filho. Eu, mãe.

Hoje, às vésperas de te ver dando o passo pra fora de casa, eu sinto que estamos ligados por um fio tão invisível quanto forte. Eu sinto que minha maternidade amadureceu e que a sua criança virou um homem admirável. 

Hoje, às vésperas de abrir a porta do teu quarto e não encontrar a tua energia, eu sinto que cumprimos um ciclo lindo. Sou somente amor, Dante. Gratidão, no sentido mais amplo e humano que esta palavra possa ter.

Mas, como mãe, preciso te falar (prefiro escrever), que você terá sempre a mim como porto seguro. Um lugar para onde ir. Um colo pra deitar. 

Como mãe, quero te dizer que continuo atenta à sua vida, este presente que nos foi dado. 

Serei sua mãe todos os dias da minha vida. 

Acho que no começo eu vou sentir muito a tua falta. Os momentos cada vez mais espremidos entre um plantão e outro, entre uma reunião e outra, entre os sonhos que realizamos juntos e separados. Acho que o ninho vai ficar um pouco vazio da sua presença doce, firme.

Mas eu vinha me preparando pra isso há algum tempo, filho. Sentindo que as minhas asas já não eram suficientes pros seus voos. E que bom! É pra isso que servem as asas das águias também. Servem pra abrigar os filhotes, protegê-los, ensiná-los a caçar, até que possam dar o vôo solo. 

Então, meu querido fruto, quero aqui te dar minha bênção. 

Se eu ainda puder te dar algum conselho, é que você ame. Ame profundamente a vida, as pessoas, o que você escolher para ser sua missão. Eu tenho pra mim que o amor move, remove e constrói. O amor é fúria, é delicadeza, é certeza e firmeza. Tudo cabe no amor. 

Quero também dizer que confio profundamente no homem que nasceu no meu menino de olhinhos de jaboticaba e cabelinho de milho. Confio no ser humano que agora é capaz de andar com as próprias pernas. 

E nada mais existe que os nossos olhos ou o abraço não possam dizer. 

Eu, amor

Você, também.

domingo, 28 de março de 2021

com meus botões

 

Os botões abriram do dia pra noite, na contramão de mim.

Os botões, que anteontem estavam fechados, floriram. 

Brotaram. 

Floresceram­­.

Eu, na contramão dos botões.

Eu, na crosta que nem marisco.

Plantei meu coração num terreno pouco fértil, talvez.

Reguei, dei sol e chuva para as folhas.

Mas nasceram, no lugar de flores, mariscos herméticos.

Fecho os olhos e imagino esta figura de linguagem.

Um vaso com uma plantinha de longas folhas verdes, de onde brotam conchas.

Um híbrido. Lugar nenhum.

De onde não se espera o frescor de um perfume, nem frutos doces.

Invejo, quase, os botões.

Só não os invejo mais porque não sei o que fazer em flor. 

O que fazer com o tempo ao léu, onde depositar o orvalho do alvorecer.

Como lidar com a brisa...

Os botões abriram e o ciclo se acelera.

Em breve as pétalas vão adornar a mesa, amareladas pelo tempo inevitável.

As conchas devem abrir quando o marisco estiver pronto.

Hiato que não se sabe. Armadilha que se desarma.

Eu, na contramão dos botões.

quinta-feira, 18 de março de 2021

meus olhos pequenos


 

- Como é que um olho tão pequeno enxerga uma coisa tão grande?
Eu sempre gostei de ler, desde que aprendi a ler. Sempre gostei de escrever. Sempre gostei deste encontro com os livros. Um diálogo com o escritor, nem sempre possível pessoalmente. Um debate silencioso, gritando nas cabeças, fazendo novas conexões e sugerindo imagens, sons, lugares, rimas....
- Como é que um olho tão pequeno enxerga uma coisa tão grande?
Essa era uma pergunta que eu, criança, repetia sempre. Um olhinho tão pequeno.... enxergando um prédio imenso! Eu pendia a cabeça pra trás ao máximo e fitava o céu. E tudo aquilo cabia ali dentro daquela bolinha de gude plantada na minha face.
- Como é mesmo que um olho tão pequeno enxerga uma coisa tão grande?
Desavisada, no meu mundo infantil, cresci com esta crença. Era também o olhar pra dentro... como é que um olho tão pequeno, enxerga coisas tão grandes da alma? Como é que, vendo só pra fora, a gente enxerga pra dentro? Como é que, havendo tanta coisa grande, a gente enxerga o que não se vê?
- Como é que um olho tão pequeno enxerga uma coisa tão grande?
Desavisada, agora pela manhã, abri o livro de Valter Hugo Mãe. Me dei de presente dez minutinhos de conversa com ele. Uma licença da realidade, pra colocar a cabeça no lugar.
Queria dizer a VHM que o livro que estou lendo, “a máquina de fazer espanhóis”, esta reflexão sobre a morte, caiu como uma luva na minha vida pandêmica. Queria dizer a ele que, daqui do “brasil” (ele escreve assim, sem exclamações, travessões, letras maiúsculas...), daqui desta lonjura do brasil, em algum lugar nos encontramos. A paz que não existe com a notícia de termos mais de 3.100 mortos ontem.... ual é o antônimo de paz, a propósito... começo a achar que não é a guerra. Começo a encontrar outros sentidos fora do dicionário.
E meus olhos bola de gude acabaram se abrindo para um universo largo, profundo e desejoso de respostas, todas mudas até agora.
- Como é que um olho tão pequeno enxerga uma coisa tão grande?
Me vejo puxando a saia da minha mãe, querendo que ela olhe pra baixo e me responda. Mas, não.
Ao contrário, sinto um nó aqui no estômago roubar a fome. Sinto que a dor do mundo inteiro está sentada no meu sofá. Sinto imensamente o desalento social se avolumando na minha porta.
Sinto e vejo.
Vejo e marejo.
Viro a página do livro e me vem a resposta em forma de confirmação.
Sim, o escritor me respondeu. Ele me disse que tem as mesmas inquietações que eu.
A dor do mundo não tem tamanho. Os descasos também não.
A vida, imensa, passando pelos meus olhos estrábicos. Talvez por isso mesmo, eu enxergue demais.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

saudade é este rastro, 

este perfume na memória, 

o sorriso que já foi, 

a alegria da lembrança, 

a tristeza da falta, 

a certeza do sempre.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Vai passar

 Uma saudade, uma nostalgia...

Me sinto agreste no litoral.

Me vejo em cores pastel.

Uma foto antiga me traduz melhor.

Uma música tocando longe já cedinho, anunciando a sexta de momo.

Tinha Lily... 

Me sinto sertão na mata.

Um dia, choveremos a folia novamente.

Abraçaremos com o suor salgado e encontraremos os olhos borrados, maquiados, mascarados ao léu, ao azar.

Cabeças e corpos e mentes entregues a uma louca utopia.

Primavera do frevo.

E esta música que não desiste de lembrar que seria carnaval. Um som distante e permanente...

Decido ir ao mercado comprar água sanitária e outras coisinhas. 

Quando entro, tem Claudionor Germano tocando no som ambiente.

"Isso aqui ainda vai pegar fogo quando o frevo esquentar"...

...


Eu me perco mas gôndolas. 

Quando finalmente me oriento, na fila das pequenas compras, fico ali zapeando um sem número de fotos nostálgicas.

#tbt infinitos de momentos vividos.

Passeio por entre meus ritmos. 

Deslizo nas memórias e digito a senha do cartão no automático.

Me sinto em algum lugar muito frívola. O país não cessa o luto. Uma pandemia se estende e se alastra.

Mas temos conosco as lembranças.

Vai passar. 

Vai passar.

Vai passar.

O Poeta já cantou estes versos.

Um tempo, página infeliz da nossa história...

Não vou terminar este texto. A sensação é de coisa aberta, bordado pela metade, gás que acabou antes de o café subir.

Vai passar.

Tomo um trago de poesia, mas não me embriago.


A imagem é a arte de Ana Catarina Mousinho

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

O livreiro


A gente não some de vez. A gente vai sumindo aos poucos. Cada casa demolida, um teatro que fecha, um cinema que vira igreja...

A gente vai perdendo os pontos de referência. 

- Naquela esquina era uma loja, virou farmácia.

-A padaria da infância virou arranha céu.

- A livraria que fechou.

Hoje eu acordei me sentindo menos daqui.

Hoje uma refência da cidade se foi.

Não era cinema, teatro ou igreja.

Era uma figura humana que se expandia para além do corpo e vai continuar se expandindo para além do tempo. 

Onde era a livro 7 hoje talvez seja uma loja de cosméticos. 

Eu ia lá sem grana. Lia uns livros "à prestação". Sentava e me sentia em casa.

Devia ter uns 15 anos...

Comecei a juntar uns trocados pra comprar os títulos que mais gostava.

E a figura de Tarcísio, mesmo não sendo próximo, era referência.

Eu simplesmente sabia quem ele era.

Hoje precisei de algumas palavras para explicar ao meu filho o que era a Livro 7. 

Um lugar que não existe mais.

Mais que um lugar!

Uma ideia.

Hoje foi Tarcisio quem partiu.

Tarcísio não era dono de uma livraria. Ele era um livreiro. 

E pensando bem, não era livraria. Era um espaço de cultura.

Ando cansada de ir procurar livros e só encontrar best sellers "remakes" de filmes ou vice versa.

Ando desesperançada de perguntar por Florbela Espanca. 

Ou por Ana Cristina Cesar...

As prateleiras não me surpreendem mais.

Hoje foi Tarcisio Pereira quem partiu. 

E eu sumi mais um pouco com a partida dele.

domingo, 24 de janeiro de 2021

FANTASIA SEM NOME



Hoje de tarde um vizinho do prédio ao lado começou a tocar um clarim. Rasgou a paz da tarde de domingo com o hino do homem da meia noite.
Papapapapa... pararapá... pararapá....
Tocava num ritmo lento, mastigando cada nota.
Aquele sopro solitário no céu nublado. De repente, uma chuva faz subir do chão o mormaço. Tão Recifense, este cenário!
O músico solitário repetia a melodia... e meu desalento o acompanhava. O bloco solitário.
Uma melancolia batendo à minha porta. Uma coisa fora do lugar... Nesta pandemia eu me virei do avesso. Me reinventei. Estudei. Cuidei de mim e dos meus. Driblei aniversário, tirei de letra as festas mascaradas de final de ano. Mas não estou conseguindo metabolizar a saudade do carnaval.
O ritual sagrado da festa profana. O ambiente de congraçamento, de confraternização. A licença poética de ser quem quiser.
Eu dizia sempre: este ano não vou brincar. Já era tradição. Na família, já era graça. Aí, um dia, tirava do armário a mala de fantasias, “pra tirar o mofo”. E vinha a primeira prévia... e como eu já não ia brincar, era melhor aproveitar! E me esbaldava, e fazia que nem visita indesejada: ia ficando. Ia pulando. Ia me embriagando na cachaça do passo, na beleza do brilho. Pulava do frevo pro maracatu. Acordava caboclinho, dormia baque solto.
A festa começava como quem não quer nada.... aquela coisa que entra na cabeça, depois toma o corpo e acaba no pé.
O carnaval sempre foi a festa mais importante do meu calendário.
Racionalmente, sei que não podemos ter a folia em 2021. Eu defendo que a gente precisa ficar em casa.
Mas como carnaval não é nada racional, a alma... ah... esta alma foliã está amofinada. Amuada e arretada. Vai ser o jeito segurar firme o sonho pela mão e levar ele direitinho até 2022.
Dessa vez eu quero brincar e não tem carnaval. A minha fantasia mais inesperada.
Fico em casa imaginando no próximo ano o tanto de gente vai sair de coronavac, de Butantã, confinamento, de vírus... de super imunizada!!!!
Chego a sentir o calor do mormaço subindo pelos pés enquanto eu subo a misericórdia com o sol pelando de quente.
Chego a rir sozinha quase antevendo a folia temporã.
E quando finalmente eu abrir novamente a caixa de maquiagem, desembrulhar o sem fim de brilhos e a coleção sem noção de adereços, vou inventar uma fantasia sem nome. Vou vestir o melhor delírio e me enfronhar ruas afora.
Viver intensamente a democracia republicana do reinado de momo. Minha contradição. Meu melhor sonho. Meu carnaval.

Horizonte

 Pausar.  Simples e necessário! Tempo restaurador. Arrumar as gavetas da cabeça, acariciar a alma, alentar as dores, afagar os prazeres. Fec...